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Os sambas de 2020 por Marco Maciel As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile A GRAVAÇÃO DO CD – O
retorno ao estúdio depois de uma década de expediente na Cidade do Samba
dividiu opiniões. Uns temiam o regresso da pasteurização dos registros, cujo
auge ocorreu nos insossos CDs de 2006 a 2009. Outros festejaram o fim do coral
dos componentes que por vezes atropelava o intérprete, bem como o som abafado
dos instrumentos da bateria na gravação ao vivo.
Felizmente, o CD do Grupo
Especial 2020 foi bem sucedido, com gravações que, se ainda estão distantes de
repetir as magistrais dos anos 80 ao não conseguir evitar a frieza em alguns
momentos, dignamente cumprem suas missões como registros definitivos para a
posteridade das 13 músicas, não havendo samba mal gravado, ao contrário dos
tempos de Cidade do Samba, quando muitas obras ficavam devendo, com equívocos
de andamento da bateria, entre outros problemas. Com exceção da faixa da Grande
Rio, os alusivos e introduções longas foram deixados de lado. O intérprete
canta sempre acompanhado de um coro mais baixo, o que dá a impressão de um leve
eco ao longo das faixas. Numa safra marcada por
sambas críticos, que denunciam o cinismo e o pouco caso dos (des)governantes
para com a cultura popular, Grande Rio, Portela, Mocidade e Beija-Flor largam
na frente como destaques. Num segundo pelotão, despontam Mangueira, Tuiuti, Salgueiro,
Unidos da Tijuca e Vila Isabel. O Z4 da temporada é formado por Viradouro, São
Clemente, Estácio e União da Ilha. Não duvido que o álbum
físico dessa temporada seja o último comercializado, já que plataformas
digitais como Spotify e Deezer crescem cada vez mais, na proporção inversa de
quem ouve CD. Com uma tiragem mais limitada, poucos lugares para a venda e
praticamente visada apenas para colecionadores, 2020 pode significar o mesmo
que 1997 para quem era adepto aos bolachões de vinil, já que naquele ano foi a
última vez que os sambas-enredo foram lançados em acetato. Aquela velha
tradição anual da ceia de Natal regada a Carnaval, com o disco duelando com os
lançamentos de Roberto Carlos na hora da entrega dos presentes, está dando
lugar para as festividades através do lançamento dos mesmos via streaming.
Sinal dos tempos... E que estranha a ausência
da Imperatriz Leopoldinense no disco. Uma sensação esquisita, de vazio... NOTA DO DISCO: 9,0. 1 – MANGUEIRA – Os
seguidos triunfos e as repercussões positivas do trabalho de Leandro Vieira na
Estação Primeira na segunda metade da década inflaram ainda mais a autoestima
do carnavalesco. Os dois campeonatos nos últimos quatro Carnavais foram o salvo
conduto para que o artista anunciasse para 2020 um tema tão envolto de
polêmicas, como a representação de Jesus Cristo na figura de um residente do
Morro da Mangueira, sem temer futuras (e tradicionais) represálias por parte da
Igreja Católica, além de patrulhamentos de quem se sentir ofendido com a
metáfora pela qual estará envolvido, sobretudo vindos de uma certa vertente no
poder atualmente. A sinopse dificultou os
compositores, que proporcionaram uma safra de sambas burocrática, num estilo de
disputa econômico e interessante, com os hinos defendidos pelos cantores de
apoio do carro de som mangueirense e recebendo gravações padronizadas e
similares. Nas eliminatórias, destacou-se de longe a obra que abre o disco, cuja
maior característica é a letra poética e rebuscada composta por Manu da Cuíca e
Luiz Carlos Máximo (bicampeões na Mangueira, ainda que não assinem a obra
bem-sucedida de 2019), com críticas muito necessárias para o momento que
vivemos, como “Mangueira, vão te inventar
mil pecados / mas eu estou do seu
lado / e do lado do samba também”
e “Mas será que todo povo entendeu o meu
recado / porque de novo cravejaram o
meu corpo / os profetas da
intolerância / sem saber que a
esperança / brilha mais na escuridão”.
A letrinha para o atual presidente da República em “Não tem futuro sem partilha /
nem Messias de arma na mão” não poderia faltar. No entanto, a melodia em
vários momentos tem dificuldade em manter o nível da letra. Uma alteração no
refrão principal em virtude de um temor de plágio de uma canção de João
Nogueira (“Mineira”) proporcionou uma quebra melódica, deixando claro na
audição que falta um complemento no trecho “Samba,
teu samba é uma reza / pela força que ele tem”. A grande extensão da letra
também não permite momentos de explosão, ao contrário do samba de 2019. E a
transição do fim do samba para o refrão não é das melhores. Por fim, a Mangueira segue
seu discurso fortemente social, com um samba-enredo que, se em termos de
qualidade fica abaixo do ano passado, mantém o dedo nas feridas e nas mazelas. NOTA: 9,7. 2 – VIRADOURO – A safra de
concorrentes da vermelha-e-branca de Niterói foi uma das melhores da temporada.
No entanto, o efeito “ensaboa” fez com que a escola preterisse pelo menos
quatro obras melhores. E a Viradouro vai pra Sapucaí com o refrão mais grudento
do ano, daqueles que ficam no subconsciente mesmo de forma involuntária. O “oh mãe ensaboa mãe” é tão forte que não
duvido que atraia alguma marca de sabonete ou de sabão em pó para a produção de
algum reclame futuro. Fica a dica! Porém, como numa espécie
de efeito colateral, o “ensaboa” acaba abafando as demais partes do
samba-enredo que exalta as lavadeiras da Bahia. É uma obra que soa apenas
correta, com refrães apenas bons (o do meio é levemente superior). A primeira
parte é a de melhor qualidade do samba, cuja letra descreve com sentimento a
rotina secular das baianas, que levantam cedo pra “lavar a alma”. Enquanto
nesta primeira, a melodia também é de alto nível, ela cai de produção a partir
do começo da segunda, sendo mais truncada e só se recuperando nos últimos
versos antes do “ensaboa”. O recurso de um refrão curto de dois versos antes do
principal geralmente proporciona um bom efeito. Que a Viradouro ensaboada não
escorregue na pista. NOTA: 9,4 3 – VILA ISABEL – Disputas
internas com não-divulgação dos concorrentes à parte (que não sejam uma
tendência), a homenagem à Brasília disfarçada de lenda indígena rendeu à
azul-e-branco um samba extenso, algumas vezes burocrático. Tanto que Tinga, que
costuma nos brindar com interpretações empolgantes, aparece contido demais na
faixa. A obra apresenta bons
refrães, sendo o que antecede o do meio (“o
curumim, o piá e o mano”...) o que mais me agrada. A melodia da primeira
parte (de ótimos momentos de letra como “Sou
eu / Mais um Silva pau de arara / Sou barro marajoara, me chamo Brasil”),
assim como no samba da Viradouro, também é superior à segunda, sendo esta bem
mais arrastada pra falar sobre o surgimento da capital federal no fim do samba,
com versos pobres esteticamente como “quando
um cacique inspirado”. No refrão principal, a
Vila segue a tradição de citar o Boulevard e sambas de quadra clássicos (como “Sou
da Vila e não tem jeito” e “Renascer das Cinzas”). Menos mal que não teve dessa
vez menções a Kizomba... É importante que as
agremiações apresentem na pista diversidades ideológicas, para que não
generalizem o Carnaval num todo como situado em um único lado. Entretanto, é
estranha essa Vila da direita, a mesma escola que há muito pouco tempo exaltou
Miguel Arraes e já levou para a Sapucaí temas como reforma agrária. NOTA: 9,5 4 – PORTELA – O grande SAMBA
portelense acabou recebendo, na época das eliminatórias, um rótulo distinto daquilo
que realmente representa, por conta da desnecessária passada inicial na
gravação da versão concorrente, em forma de toada e com a real melodia
totalmente desfigurada, em especial no refrão principal. A firula mirabolante
sintetiza a chatice das introduções intermináveis nas gravações dos
compositores, que dá a impressão apenas de satisfazerem aos próprios, quase
nunca agradando aos ouvidos daqueles que aguardam ansiosamente pelos sambas. E
a polêmica passada do futuro hino vencedor da azul-e-branco gerou o famoso
“falem mal, mas falem de mim”. No período pré-escolha, até mesmo antes da
gravação oficial, a questão “é ou não toada?” centralizava as conversas do
nicho. Foi
preciso a antológica
gravação de Gilsinho para o SAMBA, para que muitos, que
inicialmente torciam o
nariz para a obra, reconhecessem seu valor. Não duvido que
alguns tenham
aprendido somente através do registro para o CD, já que a
passada inicial
confusa da versão concorrente não revelava esta
intenção. E o experiente
intérprete portelense nos brinda com uma atuação
vibrante, que valoriza cada
variação melódica, fazendo pulsar os excelentes
refrães, resultando no maior
registro individual em discos desde a irretocável
gravação do saudoso Luizito
para o samba mangueirense de 2014. A introdução da faixa
com o grito de guerra
tendo o som da águia e o agogô como fundo, além do
ôôô do coral, é impecável. O que a versão concorrente
praticamente disfarçava era a valentia com variações incríveis nas duas partes.
O duplo sentido na polêmica sequência “Nossa
aldeia é sem partido ou facção / não
tem bispo, nem se curva a capitão” é genial, já que as críticas explícitas
a Marcelo Crivella e a Jair Bolsonaro também podem significar menções aos
bispos que catequizaram e alfabetizaram os índios, além dos capitães do mato
que infernizavam suas vidas. O que pode sustentar esta justificativa é o verso
anterior relatar que a aldeia é “sem partido”. O verso “borduna, tacape e ajaré” reaparece 20 anos depois da Viradouro em
2000. E deve ser considerada licença poética a frase “índio é filho da Portela”, motivo de contestação de alguns. Enfim, a Portela apresentará em 2020 um dos
melhores sambas do ano, ainda que seu valor esteja sendo reconhecido com algum
atraso. E não, não é toada! NOTA: 9,9 5 – SALGUEIRO – As
críticas que o samba salgueirense recebe desde a escolha, muito se deve ao fato
do talentoso e jovem compositor Antônio Gonzaga, merecedor há tempos de emplacar
uma obra na Academia, mais uma vez ser preterido pelo multicampeão Marcelo
Motta e parceria. No entanto, se muitos consideravam o concorrente de Gonzaga
superior na final, o samba-enredo vencedor julgo ser mais completo. A ótima letra em primeira
pessoa busca comover o ouvinte com trechos emotivos que visam romantizar a saga
de Benjamin de Oliveira, o primeiro palhaço negro no Brasil, em sua segunda
homenagem na Sapucaí em 10 anos (a primeira foi na São Clemente em 2009). A luta
enfrentada pelo astro circense ganha contornos épicos em versos inspirados como
“fazer sorrir quando a tinta insiste em
manchar” e “a luta me fez majestade
/ na pele, o tom da coragem / pro que
está por vir / sorrir é resistir”, que gera uma ótima transição para o
refrão principal. Por mais que a melodia
procure contextualizar o sofrimento e a superação de Benjamin, sendo dolente na
maior parte do tempo, o andamento proporcionado pela Furiosa, aliado ao dueto
Quinho e Emerson Dias, paradoxalmente tornam o samba mais animado, “pra cima”.
Pra efeitos de comparação, a gravação acústica e lenta feita por Péricles na
versão concorrente é mais coerente à proposta do hino. Um tema circense pode
parecer não ter a cara do Salgueiro. Mas a vermelho-e-branco irá se amparar na
negritude, já que os tributos a notáveis negros fazem parte do seu DNA. NOTA: 9,6 6 – MOCIDADE – A
verde-e-branco de Padre Miguel segue sua ótima sequência recente de sambas. Afinal,
para um tema como Elza Soares, torcedora e intérprete da Mocidade nos anos 70,
não poderia ser diferente. Sandra de Sá, então lembrada pelos amantes do
Carnaval pelo bizarro caco “Itaquera é alto astral” do samba da Leandro de 2010
defendido pela cantora no Anhembi, se “redimiu” assinando e defendendo a obra
com bravura, numa arrebatadora gravação na versão concorrente. Wander Pires, no CD
oficial, forneceu na faixa uma interpretação ao seu estilo, mais lírica,
tirando proveito da bela cadência da Não Existe Mais Quente no disco. Mesmo
assim, o samba-enredo não perde sua intensa valentia, mantendo a eficiente
regularidade melódica do primeiro ao último verso. A letra, seguindo o
exemplo da sinopse, visa apenas exaltar seus triunfos e feitos, deixando de
lado os infortúnios sofridos pela cantora ao longo da vida, com versos
brilhantes como “sei que é preciso lutar
com as armas de uma canção”. E a troca de “canta Mocidade” por “salve a
Mocidade” (um clássico em sua voz) no refrão principal foi de uma
felicidade ímpar. Um hino à altura do que Elza representa na história da nossa
música. “Meu povo esperou tanto pra revê-la”. E esperou mesmo! NOTA: 9,9 7 – UNIDOS DA TIJUCA – Pela
primeira vez, a agremiação apelou para o expediente da encomenda do samba,
apesar da excelente safra recebida no Carnaval anterior. Ao grupo já acostumado
a vitórias nas disputas (Diniz, Dudu Nobre, Fadico e Totonho), juntou-se Jorge
Aragão, não muito acostumado a compor sambas-enredo para os desfiles oficiais.
Até então, a derrota na final da Grande Rio visando 2014 tinha sido sua última
aventura no meio. A obra desenvolvida pelo
grupo apresenta bons e maus momentos, não conseguindo ser tão regular melodicamente.
O refrão principal não mantém o mesmo nível do ótimo central, que é seguido por
um belo trecho que também pode funcionar como um falso refrão (de melodia bem
ao estilo Diniz), proporcionando um bom efeito no samba, resultando na sua
melhor sequência. Já a boa qualidade da primeira parte se assemelha às canções
de Aragão. Entretanto, na segunda parte o samba-enredo cai bastante de
produção, passando a ser retilíneo e cansativo, com a melodia se arrastando até
chegar no refrão principal. Assim como na faixa da
Portela, a gravação oficial para o CD também foi fundamental para o ouvinte
conhecer definitivamente o samba tijucano. No registro de divulgação da escola,
a primeira passada mais lenta cantada por Dudu Nobre e Jorge Aragão não ajuda
muito. Tanto que você estranha bastante Wantuir entoando “Lá no meu quintal eu vou fazer um bangalô” logo depois de escutar o
simpático Aragão cantando o mesmo verso com a sua conhecida voz mansa e várias
oitavas abaixo (lembram de Mangueira 2012?). Com Paulo Barros de volta
e o tema sobre arquitetura e urbanismo, que a casa da Tijuca não caia
novamente. NOTA: 9,6 8 – TUIUTI – Primeiro
samba-enredo divulgado para a temporada, o Paraíso do Tuiuti encomendou mais
uma obra densa, trazendo de volta Nino do Milênio pra fazer dupla com Celsinho
Mody na condução. O hino, de melodia pesada, visa ser amparado por refrães fortes
e de efeito (como no principal) e frases mais curtas de métrica precisa,
lembrando o estilo de sambas antigos. Apesar de bem construído,
o samba comete a falha de sucessivas rimas terminadas em “ado” espalhadas por
toda a letra (desejado, lado, passado, encantado, coroado, fado, batizado,
flechado, apaixonados), o que pode acarretar em descontos no julgamento
oficial. A parte que mais aprecio no samba é o refrão principal, de estrutura
muito pouco usada, com dois estribilhos seguidos. Algo que os compositores
poderiam tornar mais casual. Escola mais politizada entre
as que desfilam na elite do Carnaval, a canhotinha Tuiuti, depois de dois
desfiles de forte cunho de engajamento, pega um pouco mais leve nesta intenção.
Apenas no trecho “a cidade das mazelas
/ pede ao santo proteção”, além de “salve o Rio de Janeiro” é observada
alguma crítica mais clara. Um Sebastião não falha.
Que a Tuiuti também não e siga essa bonita sequência no Grupo Especial. NOTA: 9,7 9 – GRANDE RIO – A
Tricolor de Duque de Caxias despontou na elite do Carnaval Carioca nos anos 90
com muita simpatia, objetivando dar um “banho de cultura” nos foliões com
desfiles que, embora ainda modestos, compensavam com uma bela discografia e
temas históricos. Não existe comparação da qualidade dos sambas-enredo da
Grande Rio de duas décadas atrás (ainda sem tantos globais) com a limitação
musical da escola, na contramão de uma melhor estrutura e mais investimentos, a
partir do primeiro decênio dos anos 2000. Os temas desinteressantes, unidos à
proliferação de famosos, patrocínios e sambas inexpressivos, geraram uma
antipatia junto aos aficionados pelo Carnaval, que pioraria ainda mais com a virada
de mesa logo após a apuração de 2018 que impediu o rebaixamento e o mea-culpa
cara-de-pau do ano seguinte. Com a imagem desgastada e
a Grande Rio flertando com as últimas posições logo após uma grande sequência
de classificações contestadas para o Sábado das Campeãs, a escola decidiu virar
a chave e iniciar um novo ciclo, formalizando uma retomada dos velhos banhos de
cultura. O ranço com a Tricolor diminuiu com a chegada dos talentosos
carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, de trabalhos consagrados na Série
A pela Cubango. O feliz enredo sobre uma das maiores personalidades de Caxias,
Joãozinho da Gomeia, um pai-de-santo gay, é muito necessário para os tempos
atuais vividos, em que a truculência dos ignorantes parece prevalecer diante de
qualquer resquício de cultura. A safra de concorrentes
foi de encantar os ouvidos. Talvez a melhor leva de sambas postulantes da
década. Não seria exagero considerar que pelo menos uma dezena deles não só
representariam dignamente a Grande Rio como também poderiam brigar pelo
Estandarte. O hino vencedor foi o mais aclamado da competição. Com uma
esplêndida melodia (que nem faz perceber a longa extensão da letra), densa nas
duas partes, a marca indelével da exclamação “é pedra preta!” e refrães
fortíssimos, afirmo com muita tranquilidade que se trata do melhor samba da
escola dos últimos 26 anos, desde quando “Os Santos que a África não viu”
celebrou a umbanda. E o hino de 2020 lembra bastante esta obra-prima de 1994,
por sinal o último tema afro desenvolvido pela agremiação antes da homenagem a
Joãozinho da Gomeia. Num CD que ignorou os alusivos, a faixa da escola (um
pouco mais acelerada em relação à versão dos compositores) é a única do disco
que não abre mão do expediente, usando um trecho de “Festa do Candomblé” de
Martinho da Vila. O refrão principal é um
autêntico levante contra a intolerância religiosa, uma súplica em forma de arte
como resposta ao ódio e ao mal que tentam propagar. “Pelo amor de Deus / Pelo amor
que há na fé / Eu respeito seu amém / Você respeita seu axé”. Nada mais
adequado. São os versos certos e alentadores em plenos tempos sombrios. Respeita o meu axé!
Respeitem a cultura popular! NOTA: 10 10 – UNIÃO DA ILHA – A
chegada de Laíla à Ilha do Governador acendeu a chama da esperança do torcedor
insulano de que a sequência de sambas insossos da agremiação poderia estar com
os dias contados. Com direito à inovação (tal qual os “atos” do tema sobre Iracema
da Beija-Flor), através da ausência de uma sinopse do enredo, o experiente diretor
de harmonia concedeu a liberdade aos compositores, revelando apenas o título do
enredo, que aborda encruzilhadas, becos, ruas e vielas, e só. No entanto, a liberdade
não significou criatividade. As obras nas eliminatórias foram confusas, não
chamando a atenção em nenhum momento. Tanto que foi uma surpresa Laíla não
desenvolver nenhuma fusão da qual está acostumado, já que quatro sambas (número
exagerado) disputaram a final. O escolhido apresenta uma melodia dolente, “pra
baixo”, diferente do que a Ilha está habituada, porém num todo arrastada. Apenas
o refrão central me agrada. Mas é impossível entender o enredo pela letra, que
se resume numa colcha de retalhos em que se mistura um festival de lamentações
que poderia servir para vários temas. Pra se ter uma ideia dos
desencontros, a letra em primeira pessoa começa com um “Senhor, eu sou a Ilha”, dando a entender inicialmente que será uma
prece concedida a Deus. Porém, conforme a narrativa prossegue, o rumo é
modificado, até que a segunda se inicia com “o seu discurso oportunista”. Discurso de quem? Pra em seguida
emendar: “o seu abraço é minha dor, seu
doutor”. Quem é esse doutor, afinal? Nem o grande Ito Melodia
conseguiu salvar a faixa do tédio, embora a primeira passada num ritmo mais
pagodeado seja interessante. Excetuando os hinos de 2014 e 2017, a discografia
insulana dessa década é pra se esquecer. NOTA: 9,0 11 – BEIJA-FLOR – É muito
estranho ouvir quase todo o CD e se deparar com a imponente Beija-Flor de
Nilópolis como uma das derradeiras faixas, já que a ordem do disco desde 1998 obedece
a classificação do ano anterior. Culpa do desastroso desfile de 2019, que seguido
da sinopse confusa do enredo sobre ruas (que pode ter alguma semelhança com a
incógnita da Ilha), não gerou tantas expectativas para a disputa dos
concorrentes, ainda mais depois da zona ocorrida na final do ano anterior
(anúncio do campeão na quadra, pra poucos dias depois ocorrer uma modificação no
resultado, com o comunicado da junção). Felizmente, os
compositores acertaram a mão e fizeram boas obras, com a melhor se sagrando vencedora.
O samba, forte e pesado, faz jus ao estilo que prolifera na agremiação desde
1998. Por mais que a letra poética seja quilométrica, a melodia de excelentes
variações em nenhum momento deixa a obra cair de produção. A primeira parte é
mais extensa pelo recurso de seus seis últimos versos servirem de preparação
para o curto refrão do meio da romaria, de pura explosão. A segunda mantém o
excelente nível e o refrão principal é arrojado por ser gingado e em tom menor,
algo raro. Com a Beija-Flor voltando
a cantar um belíssimo samba, a escola tem boas chances de voltar a ser a dona
da rua... Marquês de Sapucaí. NOTA: 9,9 12 – SÃO CLEMENTE – A
disputa que revelou o talentoso humorista Marcelo Adnet como compositor de
samba-enredo proporcionou uma obra crítica e bem-humorada que é a cara da
escola, do mais puro DNA da São Clemente. Torcedor da agremiação, Adnet relatou
em programas como Bar Apoteose e Carnaval Show ter se maravilhado na infância
ao enxergar na quadra a figura do compositor Helinho 107, um dos maiores campeões
clementianos. O enredo sobre o conto do
vigário é prato cheio para a citação dos antigos e tradicionais “171” até as
mais atualizadas falcatruas, tornando este tema também bem adequado para os
tempos vividos. Provocações em duplo sentido como “tem laranja” e “hoje o
vigário de gravata abençoa a mamata” são muito bem-vindas, bem como as
menções ao VAR e às fake news, termos recentemente incorporados ao nosso
vocabulário, além de “la garantia soy yo”,
frase marcante de um comercial da Semp Toshiba do começo dos anos 90. E bem
sacada a crítica às redes sociais em “o
filtro é a fantasia da beleza /na virtual roleta da desilusão”. A melodia pra cima ganhou uma
cadência até excessiva no CD. A obra é mais uma a apostar no bom expediente do
refrão final antes do principal. E o “Brasil,
compartilhou, viralizou, nem viu”,
que faz uma alusão a “Aquarela do
Brasil” de Ary Barroso, é sem dúvida a melhor parte
do samba, tanto que o
refrão principal, curiosamente, não faz
menção nenhuma ao enredo. Meu temor é
que as notas estendidas possam sofrer com a caneta do júri. Engraçado que os
intérpretes no fim da faixa bradam “Olha a
CÍTRICA”, numa referência à laranja ser uma
fruta cítrica. Que a maré vire a favor da
São Clemente, a escola mais injustiçada da década nas apurações. NOTA: 9,4 13 – ESTÁCIO – Passados quase
20 anos de sua primeira passagem pela Estácio em 2002, enfim Serginho do Porto,
de grande identificação com a vermelho-e-branco de São Carlos, será a voz da
escola no Grupo Especial, depois de vários Carnavais com o Leão do Acesso. O
experiente intérprete deu muita categoria e elegância ao samba estaciano no CD,
fazendo a obra crescer demais no álbum, proporcionando a segunda melhor atuação
do disco (só atrás de Gilsinho). Ainda assim, pra uma
escola que apenas pela terceira vez desde 1997 virá do Acesso com a grata
missão de abrir os desfiles da elite do Carnaval Carioca no domingo, o
samba-enredo não é dos mais qualificados, sendo num todo de melodia pesada.
Tanto que a própria diretoria ficou em dúvida quanto ao real potencial da
música, ao cometer a bizarrice de realizar a final na quadra e no fim anunciar uma
fusão de dois dos três finalistas, mas sem mostrar o samba definitivo no palco.
Poucos dias depois do evento, as parcerias não chegaram a um consenso e foi confirmado
apenas um vencedor. Um dos problemas da obra
aparece logo de cara, com a palavra “poder” no fraco refrão principal (que não
tem explosão) tendo sua sílaba tônica invertida, o que certamente será
subterfúgio para uma possível chuva de 9,7 que as escolas oriundas da Série A
costumam ser vitimadas. Felizmente, a música vai melhorando com uma curta, mas
eficiente primeira parte, tendo um refrão central mais animado como sequência.
Já a segunda segue densa, até chegar no trecho do “peneirar”, de melodia de
falso refrão, que concede um bom efeito. No entanto, o samba é encerrado mais
uma vez com muito peso, combinando com o refrão com o qual fará transição. Uma das maiores críticas
que eu tinha à obra no período das eliminatórias era a citação nominal da
cidade paraense de Parauapebas, que, por mais que esteja presente na complicada
sinopse de Rosa Magalhães, é uma palavra difícil de ser pronunciada. Portanto,
a mudança de “vou pra lá Parauapebas...”
para “devastando a natureza no Pará dos
Carajás” foi coerente. Que o desfile da Estácio
não seja uma pedra no caminho da mestra Rosa, que não merece um rebaixamento em
sua vitoriosa carreira. NOTA: 9,2 |
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