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Os sambas de 2020 por Carlos Fonseca As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile A GRAVAÇÃO - Após 11 anos de
registros ao vivo na Cidade do Samba, o CD do Grupo Especial voltou a ser
gravado integralmente em estúdio. As perspectivas eram as mais pessimistas
possíveis, com o temor de um possível regresso do formato artificial e
pasteurizado dos CDs da década passada. A previsão negativa, felizmente, não se
confirmou. Temos um resultado bem qualificado, que pecou somente no exagero de
ecos nos corais - formados por cantores contratados e integrantes dos carros de
som das agremiações, o que chega até a abafar as vozes de alguns intérpretes. A safra é um das melhores
dos últimos anos. No pelotão da frente temos Grande Rio, Portela, Mocidade e
Tijuca, com Mangueira, Tuiuti e Beija-Flor ficando um degrau abaixo. Ademais,
2020 nos reserva como grande atração, além dos sambas, os seus autores. Até
porque, não é todo ano que temos uma safra com Sandra de Sá (Mocidade), Marcelo
Adnet (São Clemente), Jorge Aragão (Tijuca), Magal Clareou (Beija-Flor) e companhia
limitada como compositores de samba-enredo. - NOTA DA GRAVAÇÃO: 9.6 1 - MANGUEIRA - "Meu nome é
Jesus da gente". O cartão-de-visitas do CD
de 2020 é um excelente samba-enredo, que poderia ser alçado a espetacular não
fosse as equivocadas mexidas - a principal delas no refrão principal ("Mangueira
/ Samba, teu samba é uma reza / Pela força que ele tem...") - entre a
disputa e o disco. A letra é o grande destaque. Inspirada do começo ao fim,
apresentado versos sensacionais como "Eu tô que tô dependurado / Em
cordéis e Corcovados / Mas será que todo povo entendeu o meu recado? / Porque
de novo cravejaram o meu corpo / Os profetas da intolerância" e "Favela,
pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem Messias de arma na mão /
Favela, pega a visão / Eu faço fé na minha gente / Que é semente do seu chão".
Um erro crasso da produção do disco na faixa verde e rosa foi deixar o coral
abafar quase que totalmente a voz do Marquinho Art'Samba, a ponto de mal
conseguir ouvi-lo. A título de curiosidade: o samba é assinado por apenas dois
compositores (o casal Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo), algo que não
acontecia na verde e rosa desde 2002, quando a escola levantou o título na
ocasião. - NOTA: 9.9 2 - VIRADOURO - "Quem lava a
alma dessa gente veste ouro". Embalada pelo inédito
vice-campeonato do ano passado, a vermelho e branco de Niterói aposta na figura
das Ganhadeiras de Itapuã para exaltar a força da mulher. O samba é bom, ficou
agradável de se ouvir, todavia contém falhas, principalmente no irregular refrão
principal, que é um amontado de rimas óbvias - "axé/Abaeté" e "ouro/Viradouro". Na
contramão, o bis central ("Camará ganhou a cidade") é
bem ok, ainda que não supere o "Ó, mãe! Ensaboa, mãe / Ensaboa pra
depois quarar" que segue a cartilha do "refrão chiclete",
dauqeles que depois da primeira audição não sai mais da cabeça. A letra ainda
tem outras passagens bonitas como "Mainha, esses velhos areais / Onde
nossas ancestrais acordavam as manhãs pra luta / Sentem cheiro de angelim / E a
doçura de quindim / Da bica de Itapuã" na primeira estrofe, e "Xangô
ilumina a caminhada / A falange está formada, um coral cheio de amor" na
segunda. Zé Paulo Sierra tem uma atuação mais comedida, valorizando o canto
principalmente nas notas mais altas. O grande destaque da faixa é Dona Maria de
Xindó entoando o "ensaboa, mãe" na introdução. - NOTA: 9.8 3 - VILA ISABEL - "Fiz o chão do
Boulevard meu céu". O enredo sobre Brasília,
cuja história foi transformada numa lenda indígena, era o prenúncio de que
sairia um samba ruim, certo? Errado. A Vila apresenta um obra que pode não ser
tão brilhante mas conseguiu destrinchar bem a complicadíssima sinopse. Gosto
muito do trecho "Do Tapajós desemboquei no Velho Chico / Da negra Xica,
solo rico das Gerais / E desaguei em fevereiro / No meu Rio de Janeiro, terra
de mil carnavais" e do refrão central "Ô, viola! / A sina de
preto velho / É luta de quilombola, é pranto, é caridade / Ô, fandango! /
Candango não perde a fé / Carrega filho e mulher / Pra erguer nova cidade".
Em contrapartida, o refrão principal tem um "Paira no ar o azul da
beleza" que é bem estranho. Tinga conduz o hino azul e branco de forma
um tanto que tímida, e ainda por cima sua voz é praticamente abafada pelo coral
em boa parte da faixa. - NOTA: 9.8 4 - PORTELA - "Hoje meu
guajupiá é Madureira". O hino portelense em
exaltação a Guajupiá é protagonista da maior crescente de um samba-enredo entre
as eliminatórias e o disco nesta temporada. A letra tem refrães muito fortes e
passagens muito felizes como "Fim da escuridão / Já não existe a ira de
Monã / No ventre há vida, novo amanhã / Irim Magé já pode ser feliz" e
"Borduna, tacape e ajaré / Índio pede paz mas é
de guerra / Nossa
aldeia é sem partido ou facção / Não tem
“bispo”, nem se curva a “capitão” /
Quando a vida nos ensina / Não devemos mais errar / Com a ira de
Monã / Aprendi
a respeitar a natureza, o bem viver / Pro imenso azul do céu /
Nunca mais
escurecer". Aliás, sacou as indiretas referentes ao “bispo” e “capitão”?
Para bom entendedor, um pingo é letra. Outro destaque da faixa
portelense é a grandiosa interpretação de Gilsinho, que contribuiu demais para
a crescida do samba que na disputa foi alvo da grande polêmica ao ser acusado
de supostamente ser uma toada. Mas se alguém tinha alguma mínima dúvida, não resta
mais: a Águia tem um samba-enredo. E um belo samba-enredo. - NOTA: 10 5 - SALGUEIRO - "Aqui o negro
não sai de cartaz". A homenagem à Benjamim de
Oliveira é a agradabilíssima surpresa da safra. A subida do tom foi fundamental
para que o samba ganhasse um outro astral. O único senão é o refrão principal,
que cai no estilo oba-oba contendo versos previsíveis como "Olha nós aí
de novo / Pra sambar no picadeiro", muito similar à aquelas da época
pós-Ita. Em contrapartida, a letra possui momentos muito inspirados como "Na
corda bamba da vida me criei / Mas qual o negro não sonhou com liberdade? /
Tantas vezes perdido, me encontrei / Do meu trapézio saltei num voo pra
felicidade" e o refrão central "E vou estar com o peito
repleto de amor / Eis a lição desse nobre palhaço: / Quando cair, no talento,
saber levantar / Fazer sorrir quando a tinta insiste em manchar". O
ponto alto é a passagem final da segunda estrofe: "Num circo sem lona,
sem rumo, sem par... / Mas se todo show tem que continuar (bravo!) / Bravo! /
Há esperança entre sinais e trampolins / E a certeza que milhões de Benjamins /
Estão no palco sob as luzes da ribalta / Salta, menino! / A luta me fez
majestade / Na pele, o tom da coragem / Pro que está por vir... / Sorrir é
resistir!". Por fim, dois pontos positivos: um para a Furiosa, que dá
um show à parte, e outro ao entrosamento da dupla Emerson Dias e Quinho, que
volta a entoar o tão marcante "Arrepia Salgueiro!" nos discos
oficiais após seis anos. - NOTA: 9.8 6 - MOCIDADE
INDEPENDENTE - "Meu povo esperou tanto pra reve-la". Que samba fantástico. Uma
homenagem à altura da história e carreira de Elza Soares. É uma obra
contagiante, que alia uma melodia toda pra cima com uma letra muito bem
constuída. Uma sequência que curto muito está na primeira estrofe: "É
sua voz que amordaça a opressão / Que embala o irmão / Para a preta não chorar
/ Se a vida é uma “Aquarela” / Vi em ti a cor mais bela / Pelos palcos a
brilhar". Já o seu melhor momento é a sequência que vai do "Ó,
nega, “sou eu que te falo em nome daquela” / Da batida mais quente, o som da
favela / É resistência em nosso chão" ao contagiante refrão principal "Laroyê
ê Mojubá… liberdade / Abre os caminhos pra Elza passar… / Salve a
Mocidade!". Wander Pires faz uma interpretação de almanaque, bem ao
seu estilo. A Não Existe Mais Quente também é outro show à parte. A verde e
branca mostrou, com muita maestria, que "essa nega tem poder". -
NOTA: 10 7 - UNIDOS DA
TIJUCA - "Como é linda a vista lá do meu Borel". Na contramão dos últimos
anos, a azul e amarelo optou por encomendar seu samba-enredo para uma parceria
capitaneada por nomes de peso como Jorge Aragão, Dudu Nobre e André Diniz. E o
resultado não poderia ser diferente: um belo samba - e é raro ver uma
combinação de samba bonito com desfile de Paulo Barros. A sequência "Lá
no meu quintal, eu vou fazer um bangalô / Já foi tapera feita em palha e sapê /
E uma capela que a candeia alumiou / A Lua cheia / Vem, é lindo o anoitecer /
Vai, eu morro de saudade / Todo mundo um dia sonha ter / Seu cantinho na
cidade" é simplesmente fantástica, talvez uma das melhores que temos
na safra. Outro grande momento está na segunda estrofe: "Lágrima desce
o morro / Serra que corta a mata / Mata, a pureza no olhar / O rio pede socorro
/ É terra que o homem maltrata / E meu clamor abraça o Redentor". A
interpretação de Wantuir no disco dá um requinte a mais ao samba. E por fim,
deixo aquele que considero um dos melhores versos do carnaval deste ano: "Pra
construír um amanhã melhor / O povo é o alicerce da esperança". -
NOTA: 10 8 - PARAÍSO DO
TUIUTI - "Um Sebastião não falha". Recorrendo outra vez ao
recurso da encomenda, a azul e amarelo exalta os Sebastiões - Dom Sebastião I
de Portugal e São Sebastião, padroeiro da escola e do Rio de Janeiro - com um
belo samba. A sua marca é a melodia estilo "pagodeada" que encaixou
bem com a letra, isso fica nítido nos primeiros versos ("Todo 20 de
janeiro / Nos altares e terreiros / Pelos campos de batalha"). Destaco
a sua segunda parte, que vai do "Rio, do peito flechado / Dos
apaixonados / Rio batuqueiro / Oxóssi, orixá das coisas belas / Guardião dessa
Aquarela / Salve o Rio de Janeiro!" até o refrão duplo "No
Morro do Tuiuti / No alto do Terreirão / O cortejo vai subir / Pra saudar
Sebastião!" - o recurso do refrão duplo, aliás, é bem raro de ver em
um samba-enredo. Um exemplo para tal é Beija-Flor 1997. O único senão é uma
falha melódica no verso "Renasce sob nós um caboclo encantado" entoado
de forma meio atropelada. Celsinho Mody ganha outra vez a companhia de Nino
do Milênio, de volta após nova passagem pela Inocentes, e a dupla conduz com
firmeza a obra. Destaque para o sensacional solo do cavaco em afinação de
bandolim no fim da faixa. - NOTA: 9.9 9 - GRANDE RIO - "Baixar no
terreiro quilombo Caxias". Que sambaço! Joãosinho da
Goméia, pai de santo que é figura importante na história de Duque de Caxias,
ganhou um samba-enredo a sua altura. E a tricolor caxiense tem um samba-enredo
que nos remete as suas grandes obras dos anos 90. E nem mesmo o andamento um
pouquinho acelerado o comprometeu. O cartão-de-visitas sãos versos iniciais "É
Pedra Preta! / Quem risca ponto nesta casa de caboclo / Chama Flecheiro, Lírio
e Arranca-Toco / Seu “Serra Negra” na jurema, Juremá…". Dois trechos
que gosto muito na letra estão na primeira estrofe (a partir do "Era
homem, era bicho-flor / Bicho-homem, pena de pavão") e o "Malandro,
vedete, herói, faraó… / Um saravá pra folia" na segunda. O grande
momento do samba, contudo, é o seu refrão (ou seria um falso refrão?)
principal: "Salve o candomblé, Eparrei Oyá / Grande Rio é Tata Londirá
/ Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé / Eu respeito seu amém / Você
respeita o meu axé / (respeita o meu axé)". Evandro Malandro, em
grande fase, faz uma estupenda interpretação. Não é exagero dizer que é o samba
do ano apesar da qualificada safra que o Grupo Especial apresenta. A Grande Rio
provou este ano que o banho de cultura está de volta. E que volte pra ficar. -
NOTA: 10 10 - UNIÃO DA
ILHA - "É hoje, o dia da comunidade". O pior da safra. E ainda
ficou chatíssimo de se ouvir. A melodia é arrastada, apela pro lirismo pra
tentar cativar o ouvinte, e a letra é um amontado de chichês, infomações
desconexas e versos soltos como "O seu abraço é minha dor, seu
doutor". E ainda quero entender que mensagem o samba quer
passar com essa de "Inocentes, culpados, são todos irmãos".
Ponto positivo para Ito Melodia e a bateria, que mais um ano tentam extrair
algo de melhor. Ademais, é incrível o quanto a União da Ilha se perdeu depois
de 2017 em matéria de samba-enredo. E nem mesmo o Laíla deu jeito. - NOTA: 9.4 11 - BEIJA-FLOR - "Segura o povo
que o povo é o dono da rua". Com o perdão do
trocadilho infame, a Deusa da Passarela buscou nas ruas a trilha para se
recuperar do fiasco do carnaval passado. E o samba é daqueles que segue o
padrão Beija-Flor: melodia pesada e vibrante aliada a uma letra bem construída.
Há passagens muito inspiradas como "E nessas andanças, eu sigo teus
passos / São tantas promessas de um peregrino / É crer no milagre, sagrados
valores / Em tantos altares, em tantos andores", mas o grande achado é
o trecho final da segunda estrofe "Me vejo em teu caminho / Nessa
imensidão azul do teu amor / E às vezes, perdido / Eu me encontro em tuas asas,
Beija-Flor", sem falar no refrão principal "Ê Laroyê Ina
Mojubá / Adakê, Exu, ô, ô, ô" que é um dos mais fortes do ano - e
aliado ao fato de que a Beija-Flor irá fechar o carnaval, é um bom presságio de
ser um rolo compressor no desfile. Neguinho faz aquela costumeira atuação
convencional, ainda que entoe o "insiste em passear no coração"
de maneira meio esquisita na primeira passada. A título de curiosidade, o samba
da azul e branca é assinado por dois artistas muito conhecidos do pagode:
Magal, vocalista do Grupo Clareou, e Thiago Soares, ex-vocalista do Bom Gosto -
ambos criados na escola. - NOTA: 9.9 12 - SÃO
CLEMENTE - "Compartilhou, viralizou, nem viu!". A despeito da subida de
tom, de alguns probleminhas provenientes do desenvolvimento do enredo na
primeira estrofe e da desnecessária subida de melodia no refrão central ("Tem
laranja! / Na minha mão, uma é três e três é dez"), o samba é bom e
tem a cara e característica da veia crítica da São Clemente. O melhor momento
do samba aurinegro é o poço de genialidade da segunda estrofe: "Hoje, o
vigário de gravata / Abençoa a mamata / Lobo em pele de cordeiro... /
"Trago em três dias seu amor" / "La garantia soy yo!" /
"Só trabalho com dinheiro" / Chamou o VAR, tá grampeado / Vazou, deu
sururu / Tem marajá puxando férias em Bangu!". Os outros dois refrães ("Brasil,
compartilhou, viralizou, nem viu!"; "Meu povo chegou ôô / A
maré vai virar laiá") são bem contagiantes. Como no ano passado,
Leozinho Nunes e Bruno Ribas ganham a companhia de uma voz feminina - desta
vez, Grazzi Brasil. Mesmo com a embaralhada de vozes em todo o samba, o trio
protagoniza alguns cacos cômicos (e críticos) na segunda passada como
"Aleluia, Senhor!" e "Caiu na fake news, mané!", além de
encerrar a faixa com uma "licença poética" de alterar o famoso lema
da aurinegra para "Olha a Cítrica", em referência à laranja, algo que
fora feito na versão concorrente. - NOTA: 9.8 13 - ESTÁCIO DE
SÁ - "O poder que emana no alto da pedreira". De volta ao Especial mais uma vez, o velho Estácio apresenta um samba que é bem complicado, proveniente de um enredo mais ainda, mas que a produção do disco o deixou bem escutável. A obra, que quase entrou numa junção maluca anunciada pela escola, possui uma melodia toda pesada e uma letra que não é lá das mais inspiradas. Os únicos bons trechos são "Vai, São Carlos / À força dos ancestrais / Pedra fundamental do Samba / Batalhas e rituais", que abre a primeira estrofe, e "Da lua, de Jorge, eu vejo o Planeta Azul chorar / Atire a pedra quem não tem espelho / Quero meu rubi vermelho / Pra minha Estácio de Sá", que fecha a segunda. Destaque para a boa interpretação de Serginho do Porto, que deu uma vida ao hino estaciano na faixa. A ver se o Leão conseguirá tirar as pedras do seu caminho. - NOTA: 9.7 |
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