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Os sambas de 2014 por João Marcos
As avaliações e notas referidas apresentam critérios distintos dos utilizados pelo júri oficial, em nada relacionados aos referidos desempenhos que as obras virão a ter no desfile A
GRAVAÇÃO DO CD - Antes de mais nada,
tendo em vista os acontecimentos de 2013, acho importante explicar que
o SAMBARIO não é júri de carnaval, não
atribui notas nos padrões da LIESA e não pretende
adivinhar qualquer coisa ou orientar os jurados do Rio. Somos ANALISTAS
e nosso projeto tem uma lógica diferente: nós comentamos
o CD. Pode ser que algo que não deu certo no CD funcione na
avenida, e pode acontecer o contrário. Acreditamos que o jurado
tem de ter bastante cuidado com o conteúdo da internet (sites,
júris de famosos, fóruns de carnaval, etc.) para
não ser influenciado e realizar julgamentos equivocados com base
em opiniões que, muitas vezes, são totalmente parciais. O
trabalho do jurado é importante e deve ser feito com seriedade.
Dito isto, passemos ao CD – as versões que nos
chegaram, vindas de lojas ‘on line’, são
introduzidas por pequenos comentários dos carnavalescos
explicando o enredo. A novidade, infelizmente, atrapalha a
fluência do CD como um todo e pedimos para que seja abolida nos
próximos anos. A produção, levando em conta o
estilo de gravação ao vivo, melhorou um pouco, mas ainda
falta um trabalho mais personalizado que dê uma cara única
para cada faixa, seja no andamento, seja na afinação dos
instrumentos; algo que deixe o clima diferente em cada samba. Com
relação à safra, é muito equilibrada e de
qualidade satisfatória; não há sambas
antológicos, nem nada do nível de Portela e Vila 2013,
mas a audição é agradável e as obras
são relativamente bem feitas, o que pode complicar os jurados na
diferenciação das notas. Os destaques são Portela
e Mangueira, mas até os sambas mais fracos tem suas virtudes.
NOTA: 7,0.
VILA ISABEL -
O samba da campeã de 2013 é bem ajustado, com uma melodia
sem altos e baixos, muito técnica e profissional. A mensagem do
enredo está muito clara na letra. O refrão de
cabeça tem um recurso bem bacana, com rimas internas no meio dos
versos (coração/marcação, certeza/natureza,
lembrar/respeitar). Sem Martinho e Tunico, algumas
características do estilo de composição de
André Diniz voltaram a aparecer com mais claridade - a obra
deixa de lado o romantismo e ganha uma cara mais intensa, encorpada. Na
letra, o discurso poético é competente, apesar da
utilização de expressões que, apesar de não
me agradarem ("o branco verdejou", "floresta entrelaça pela
salvação"), não chegam a comprometer o todo. O
"tem de respeitar" me parece um pouco gratuito e deslocado no sentido
da letra, mas, repita-se, não a diminui - é um recurso
utilizado para motivar o canto do componente, e dentro da
intenção dos autores, funciona. Gosto muito do
refrão do meio, que tem uma variação
melódica inesperada. O grande problema de sua
recepção pela internet carnavalesca é a
comparação com a composição do ano anterior
- enquanto o samba de 2013 tinha um sentimento diferenciado que tocava
o coração, o de 2014 parece feito pensando no componente
da Vila - um samba para o desfile, admirável, mas que não
chega a emocionar, apesar de ser a afirmação da extrema
qualidade de seu compositor. NOTA: 8,4.
BEIJA-FLOR -
É um samba difícil de se avaliar porque há um
descompasso gigantesco entre o sentimento que tenta passar e o enredo.
A melodia busca uma singeleza, aquela voz embargada na garganta, que
serviria bem, p.ex., para um desfile sobre Fernanda Montenegro. Mas, e
para Boni? Boni causa tal emoção nas pessoas? Além
disso, o grosso do enredo é a história da
comunicação, que também não é um
assunto muito emocionante. Mas até que ponto os problemas
são culpa do direcionamento artístico do carnaval da
escola ou dos compositores? Quando ouvi o samba na versão
concorrente, achei-o desnecessariamente longo e travado; com as
modificações, no entanto, a dinâmica melhorou de
forma considerável, apesar da obra ainda parecer grande,
escondendo trechos bonitos, como o "Ir mais além, tocar o
céu / Erguer a Torre de Babel / Escrever seu nome num papel / Eu
e você, em sintonia seja onde for / No infinito ao teu sinal eu
vou". Gostei da modificação no bis, onde um 'la la
ía' estranho e forçado, virou um 'clareou', que funciona
bem melhor como ponto de explosão. Algumas sacadas, como a
referência a jingles da Globo, ficaram interessantes; outras,
soaram forçadas - principalmente os jogos de palavras, como o
'Leva desejo divino, divino desejo me leva', que não tem muita
função dentro do samba. Mesmo sendo parte do que foi
pedido pela escola, a menção ao "babado" fica muito
deslocada no discurso poético. Tecnicamente, o samba não
é ruim, a maioria dos problemas é culpa do enredo, mas me
parece que os compositores erraram ao colocar um vestido de gala numa
mulher que está indo comer peixe na praia. NOTA: 7,2
UNIDOS DA TIJUCA -
Apesar de eu particularmente preferir sambas diferenciados, onde a
melodia casa com a letra e cria um sentimento único, muitas
vezes temos de levar em conta o enredo ao analisar a obra. E aí
está a questão - não dá para exigir muita
poesia ou sentimento nesta grande brincadeira que será o desfile
de Paulo Barros. Se fosse muito poético, poderia dar a mesma
sensação de inadequação do samba da
Beija-Flor. E a faixa da Unidos da Tijuca deixa bem claro o que a
escola quer e o que vai mostrar. A melodia é meio
genérica? Sim, e o refrão de cabeça é um
exemplo: não tem o menor diferencial, está ali e pronto.
A letra é um pouco preguiçosa, com soluções
com exagerada simplicidade em alguns pontos, como no trecho "Dos
animais, agilidade / A inspirar velocidade / Impressionante a ousadia /
A internet ultrapassou a energia / A equipe anunciou, no pit stop o
piloto parou". Daí em diante, o samba cresce - o refrão
do meio é interessante e sobressai e a segunda, apesar de
simples, traz uma melodia levemente emocionante para falar de Ayrton
Senna com algum sentimento, sem destoar da brincadeira inicial.
É um samba muito simpático. NOTA: 7,9.
IMPERATRIZ -
Quando li a sinopse, tinha questionamentos quanto ao direcionamento
poético que os compositores deveriam seguir. A aventura medieval
que serviria como moldura para contar a história do Zico tinha
tudo para confundir a cabeça de todo mundo. A safra da escola,
realmente, foi bem abaixo daquilo que a Imperatriz costuma apresentar,
mas o samba escolhido é interessante e tem grande chance de dar
certo. Os compositores foram muito inteligentes ao se livrarem logo da
questão da brincadeira medieval e basicamente contar a
história do Zico. O refrão principal, baseado em canto de
torcida, gruda no ouvido e é bem forte. A letra é de
extrema competência, muito bem construída, e o samba tem
um sentimento leve, que se diferencia das obras pesadonas que a escola
levou nos últimos anos. O refrão do meio é que eu
achei um pouco sem graça, servindo apenas como um alívio
melódico. Também não gosto muito do final do
samba, que acho confuso melodicamente, com métrica
forçada no trecho "Vestir o meu manto verde, branco e dourado! /
Quem dera te ver por mais um minuto / Na arquibancada, todo mundo canta
junto". Mas é um samba muito bom. NOTA: 8,3
SALGUEIRO -
O grande achado é a entrada da primeira, que tem muitas
variações melódicas bonitas e um sentimento
diferente, que há muito tempo não se via no Salgueiro.
Esse sentimento vai muito bem até o refrão do meio, onde
o samba prepara um refrão afro com nomes de orixás, e
é um refrão bacana em melodia - e funciona. Na segunda,
é que a coisa cai um pouco - o samba não tem mais como se
apoiar na temática afro e a melodia parece não se
desenvolver com a mesma facilidade. Na parte final, a letra até
consegue escapar da armadilha da mensagem ecológica do enredo,
mas a melodia está apenas "segurando o resultado", deixando de
atacar e buscar o gol. Perde brilho. O trecho que substitui o
refrão, apesar de ousado, não me convence totalmente e
não sustenta a melodia do samba como um todo. Apesar disso,
é uma obra bem interessante. Agora, na boa, tem tanta gente
cantando na faixa que vou pedir para a escola me deixar cantar
também uns versinhos no CD do ano que vem. NOTA: 8,2
GRANDE RIO -
A escola de Caxias optou por um samba leve, de uma simplicidade
melódica evidente, bem pra cima, que tem em seu refrão do
meio o momento de maior destaque, com a boa utilização do
recurso de repetição com o "joga a rede, pescador". O
refrão de cabeça tem uma pausa interessante com o
esticamento do verso "Grande Rio vai passaaaaaar", que conclui com o "O
couro vai comer", dando um bom efeito. O resto da melodia é
correta, sem grandes problemas. A letra é que poderia ter
explorado melhor o enredo, que, apesar de desconjuntado, abre
espaço para imagens poéticas bonitas; porém, os
compositores acabaram optando por soluções
preguiçosas, como a rima
"coração/emoção" do refrão de
cabeça, que não tem um sentido que a justificasse dentro
do enredo, ou o trecho "Vem ver que foi o índio quem admirou / A
imensidão da beleza local / Primeiro habitante, inocente brincou
/ Nas ondas brancas do seu litoral", que deveria ter sido tratado de
forma menos direta para não parecer forçado. As partes
não seguram a qualidade dos refrões. NOTA: 7,8
PORTELA -
Continuando a linha diferenciada dos sambas da escola nos
últimos anos, a Portela traz o melhor samba do ano, de longe.
Tem momentos únicos, como o espetacular refrão de
cabeça, contagiante, bonito, poético, ousado,
sensacional. A letra traz imagens bonitas sem a necessidade de versos
palavrosos, utilizando recursos simples como a
personificação de elementos em "O Rio sai da roda de jongo" e
“Lá vem o Rio de terno de linho e
chapéu panamá", "A ilusão é uma atriz se
exibindo na praça linda e feliz". O samba só não
é perfeito porque sinto que, em poucos momentos, os compositores
acabaram reaproveitando momentos melódicos de outros sambas da
"trilogia", como em "Eu vou / Da Revolta da Chibata / Ao sonho que faz
passeata / Seguindo a canção triunfal", e apesar de
racionalmente aceitar o argumento de que se trata da "assinatura" da
parceria, a marca que ela quer imprimir em seus sambas, isso acabou me
incomodando um pouco. Lembra, de forma bem mais tímida,
evidentemente, o que aconteceu com a própria Portela em 1982,
quando depois da obra-prima de 1981, David Correa trouxe um samba
igualmente agradável, mas que repousava em pequenos momentos de
melodia que vinham do samba anterior, dando sensação de deja vu. A
questão é - os outros sambas do grupo também fazem
isso, com fórmulas muito mais batidas, e talvez a parceria da
Portela tenha chegado a um nível que faça a gente exigir
mais deles do que dos demais compositores. De resto, é um samba
irresistível, que sobressai demais na safra, apesar de ser
inferior aos dois anteriores da escola. NOTA: 9,2.
MANGUEIRA - O
segundo melhor samba do ano tem momentos muito inspirados, bonitos
mesmo, numa melodia forte, contagiante, com dois refrões muito
bons e uma interpretação arrasadora de Luizito. Gosto
muito da parte que fala de Cabral, que usa um caminho melódico
que não é muito comum nos sambas atuais, apenas de
não ser uma invenção ou uma ousadia. A letra
é muito clara e delimita o enredo com competência. Por
incrível que pareça, o samba tem o mesmo problema da
faixa anterior - lembra os dois últimos sambas portelenses no
trecho "ÔÔÔ... lá em São Salvador / Vou
lavar a escadaria na fé do nosso senhor / Faço um pedido
a rainha Iemanjá / Ilumine a passarela pra minha escola passar".
O final, também, tenta repetir o efeito do samba de 2013, com
"Orgulho... respeito, igualdade", que é praticamente
idêntico a "É hora... de darmos as mãos”. Mas
o clima da faixa é tão bacana que ficar apegado nesses
detalhes é pura chatice e, como já dito, todos os sambas
tem essas repetições de trechos melódicos de
sambas anteriores. O que vale é o sentimento, e o samba como um
todo chama muito a atenção. NOTA: 8,8
ILHA - O
clima da faixa combina com o enredo de temática alegre, mesmo
com o samba trazendo toques de romantismo em sua melodia. O
refrão do meio é muito bom, e a obra tem momentos
inspirados como em "Nas travessuras ao léu, por esse imenso
país / Vai colorindo o céu em um bailado feliz". O grande
problema é a costura desses momentos melódicos - o samba
traz uma característica muito comum em São Paulo e que
começa a ser difundida no Rio de ter "versos de virada
melódica", que são os versos um pouco mais esticados, que
servem para ligar trechos de melodia que não se casariam com
tanta facilidade. É um recurso válido, mas a melodia pode
ficar um pouco solta, como em "Na vitrine vejo o meu olhar no seu
olhar", "Meu carnaval é o quintal do amanhã", "Ao maior
tesouro da nação"; no entanto, no samba da Ilha,
não chega a comprometer o todo. A obra só não
é ótima por causa do refrão de cabeça, com
o clichê da rima 'Amor / Eu vou', direto dos anos 90 pelo
túnel do tempo, e o verso "Ser criança não
é brinquedo não!", cuja melodia tem uma pausa preparando
para finalizar explodindo, mas cuja solução não
atinge o resultado pretendido. NOTA: 8,5
SÃO CLEMENTE
- É um samba absurdamente redondo, com uma melodia deliciosa e
alguns trechos diferenciados. Gosto muito da entrada do refrão
de cabeça, que tem uma antecipadinha no "Eu quero mais é
ser feliz" de muito bom gosto, apesar do resto do refrão apenas
cumprir tabela. A primeira tem momentos bonitos, como em "Pobre... Mas
rico de emoção / Livre... Mas preso na paixão". O
final da segunda também é bastante interessante. A
simplicidade da letra passa o enredo com clareza. A única parte
que me incomoda é o refrão do meio, que é
genérico demais, apesar de ser clara a intenção
dos compositores de fazer algo despretensioso, apenas aquele
típico refrão de resposta que caracteriza a parceria. A
escola tinha opções superiores na disputa, mas o samba
tem de ser analisado pelo que é, e acaba se destacando na safra.
NOTA: 8,4.
MOCIDADE
– Tem melodia competente e alguns trechos inspirados –
gosto muito do final da primeira, que tem um toque meio
Gonzagão, meio Elba Ramalho. O clima do samba fica num meio
termo interessante, nem tão oba-oba quanto o tempo em que o
coração disparava, nem o tom sonolento do samba de
Portinari. A letra tem versos bonitos e consegue fugir do enredo
difícil, onde Fernando Pinto visita Pernambuco numa viagem
imaginária com referências futuristas do Ziriguidum de
1985 e dos índios de Tupinicópolis. Ainda assim, aparecem
algumas derrapadas, como no verso “Levo comigo meu ‘Padim
Padre Miguel’”, que além de parecer forçado,
briga um pouquinho com a métrica. Em outros momentos, peca por
abusar de clichês, soltando expressões batidas como o
“até o dia clarear”, “sempre vou te
amar” e afins. Mas o que falta é o momento de diferencial
– o samba não é chato, mas não tem muitas
partes que se sobressaiam, que chamem a atenção, e
aí o ouvinte não tem grandes queixas, mas acaba
não ficando com muita coisa gravada na mente depois da
audição. É claramente, um samba técnico,
feito para não comprometer o desfile, mas falta a
pretensão de eternidade que todo os compositores deveriam buscar
para as suas obras. NOTA: 7,9.
' IMPÉRIO DA
TIJUCA – O samba tem pegada e um refrão poderoso.
Muito se falou sobre a falta de “africanidade” da obra,
tendo em vista o enredo seguir uma veia muito ligada à cultura
negra, mas não vejo problema quanto a isto. O refrão do
meio também é muito bom e a letra passa bem o enredo.
Acho que o problema do samba é parecido com o da Ilha –
bons momentos melódicos que são costurados de forma
às vezes um tanto arbitrária, com pontes e esticadas e
viradas melódicas típicas de sambas de São Paulo,
mas que, neste samba, foram feitas em demasia, tornando o recurso
cansativo. A construção do “todo” é
muito desconjuntada, com alterações de sentimento em
diversos trechos, e a falta de direcionamento do samba só
consegue ser mascarada porque o andamento da faixa é muito
rápido, não dando chance ao ouvinte de sentir todas as
variações e nuances. Talvez seja o samba mais denso do
Grupo Especial, e isto pode ser uma faca de dois gumes – se o
samba for bem cantado, dá energia ao desfile, mas se não
for, como a melodia tem um excesso de pontos de explosão, num
desfile longo, pode ficar chato; de qualquer forma, teremos de esperar
o desfile para saber o que vai acontecer. A interpretação
segura de Pixulé encerra o CD em um bom tom. NOTA: 8,1.
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