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Muito Antes de Nós, Foliões
SINOPSE ENREDO 2018

Muito Antes de Nós, Foliões



Sinopse:

O vosso nome Luíz
Hum claro enigma produz:
Pois, tirando o i sois Luz
E tirando o u sois Liz.
Estes dous caracteres quis,
Que para vossos louvores,
Fossem fiéis mostradores
De que sois com energia
Flor de liz na bizarria
Luz do Sol nos resplendores.
Poema de Antônio Francisco Soares a Luís de Vasconcelos (1785).

Introdução

Neste carnaval, a X9 Carioca vem contar a história daquele que poderia ser considerado o tataravô dos nossos desfiles de escola de samba. Você, folião que hoje curte os desfiles da Sapucaí, do Anhembi e inclusive aqui, na internet, sabia que em pleno século XVIII, no Passeio Público do Rio de Janeiro, importante cenário da vida urbana da colônia brasileira, alegorias ricas e fantasias suntuosas desfilaram em festa? Pois sim. Entre os dias 2 e 4 de fevereiro de 1786 (até a data lembra a do carnaval) um desfile, que nesta história chamaremos de cortejo, cruzou a cidade com alegria, quase como as escolas de samba cruzam as passarelas hoje em dia.
O que celebrava o cortejo? Uma dupla união matrimonial. No ano de 1785, após arranjos da metrópole Portugal com o país vizinho Espanha, Dom João se casa com Carlota Joaquina. A irmã de João, Maria Vitória, se casa com Dom Gabriel, irmão de Carlota. Os casamentos ocorrem em solo espanhol, mas o então vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos, resolve prestar uma homenagem aos seus senhores por conta das bodas e realiza o cortejo no Rio de Janeiro.
E são as histórias que antecedem ao cortejo, bem como a reprodução do próprio ao fim de nosso desfile (aliás, ambicionamos fazer um desfile dentro do desfile) que a X9 vai mostrar hoje. Deleite-se.

1º setor: amizade entre dois impérios

Depois da Viradeira , Iberismo ? Dona Maria I assume o controle de Portugal. Humilha Marquês de Pombal, seu antecessor, com processos e coloca Portugal no trilhar que julga ser o correto. Entre os rumos a serem tomados, a retomada de laços diplomáticos se faz necessária. Para isso, Maria arranja o casamento de seu filho João com a infanta Carlota Joaquina, filha de Carlos III, rei de Espanha. E mais: Dona Maria Vitória, também filha de Maria I se casa com Dom Gabriel, também filho de Carlos. A cerimônia do casamento duplo se realiza na sala do trono do rei espanhol, no dia 9 de junho de 1795. A celebração conta com 2000 convidados e é cheia da pompa típica da corte espanhola. Bebidas, comidas e danças dão o tom da animada festa. As bodas seriam lembradas ainda por muito tempo. Que dia!
O matrimônio sela a amizade de forças convergentes. Tanto Maria I quanto Carlos III tinham ideais de desenvolvimento científico, artístico e tecnológico. Apostavam na inovação e na modernização da universidade, bem como na difusão das belas artes. Dona Maria I inaugura a Real Academia de Ciências em Portugal mais ou menos ao mesmo tempo em que Carlos III constrói dois dos mais importantes museus espanhóis: Reina Sofia e Museu del Prado. Na economia, ambos os países apostam no desenvolvimento econômico. Na Espanha, Carlos investe na indústria de porcelanas e em Portugal, Maria fecha um tratado de cooperação comercial com a Prússia. Apesar de ambos os governantes serem tendencialmente pacíficos, reestruturam seus exércitos.
Enfim. Em reinados que tinham pontos convergentes, o casamento duplo de João com Carlota e de Maria Vitória com Gabriel é a síntese da amizade. O bom humor, relativo a um possível futuro promissor, se espalha na Península Ibérica. As boas novas atravessam o Oceano Atlântico. A notícia chega à colônia brasileira.

2º setor: a notícia da união chega à Colônia

Rio de Janeiro. No maior centro da então colônia brasileira, assiste-se a grandes avanços urbanísticos, proporcionados pelo vice-rei Luís de Vasconcelos. Muito ligado ao emergente iluminismo e suas ideias, como à de importância dos bens públicos, ele manda abrir e calçar vias, implementa fontes e bebedouros de água potável na cidade. Pode-se dizer que foi na administração de Luís de Vasconcelos que o Rio de Janeiro experimentou sua primeira grande virada urbanística.
Além da questão urbana, Luís de Vasconcelos é um homem das belas artes. Ele viabiliza a construção Casa dos Pássaros, hoje conhecida como Museu Nacional do Rio de Janeiro, e cria a Sociedade Literária, grupo que reunia intelectuais para a discussão do estado da arte e da política de seu tempo. Nessa sociedade eram justamente discutidos aspectos do iluminismo nos quais o próprio Luís de Vasconcelos se inspirava para a sua administração.
Para unir a questão urbana à questão da arte, Luís de Vasconcelos idealiza a construção do Passeio Público do Rio de Janeiro, que pode ser encarado como o primeiro parque de uso público em um grande centro brasileiro. Inicialmente pensado para aterrar o assim chamado Boqueirão , o Passeio une o que havia de mais moderno no que se referia à arquitetura com monumentos de bom gosto. A inauguração do parque se dá em fins de 1785.
A notícia do casamento e da amizade entre Portugal e Espanha chega à colônia e anima a administração, a burocracia e a elite brasileiras. O bom humor que pairava na Península Ibérica chega ao solo brasileiro.
Pensando em dar visibilidade à sua criação, em trazer um pouco mais de cultura para seu povo e, principalmente, em homenagear o duplo matrimônio que ocorrera em solo espanhol naquele ano, Luís de Vasconcelos pondera a possibilidade de realizar um cortejo em plena passarela central do Passeio Público. O parque recém-inaugurado seria o cenário para o tataravô de nossos desfiles. Portanto, o Passeio seria o tataravô das nossas passarelas do samba.

3º setor: o cortejo é preparado

Quem seria o responsável por preparar o cortejo? Com que recursos materiais se contaria? Quem costuraria, esculpiria, pintaria? Para pensar em tudo isso, Luís de Vasconcelos nomeia Antônio Francisco Soares. Infelizmente a história brasileira pouco conhece da biografia desse militar. Ficou sua obra, tal como o poema epígrafe desta sinopse, bem como o cortejo.
O cortejo pensado por Soares misturou elementos lusitanos, espanhóis, árabes e de mitologia romana, além de fazer alusão (e, diga-se de passagem, lobby) ao vice-rei, como se verá adiante, na hora de conhecermos a reprodução do desfile.
Os materiais eram os mais variados e luxuosos: seda, veludo e algodão de primeira qualidade nas indumentárias. Madeira maciça para as estruturas das alegorias. Para a decoração das mesmas chegou-se a usar fogos de artifício e até material vivo: pequenas árvores, flores e até mesmo cavalos para a tração.
Não encontramos registros de quem teria feito o trabalho pesado na construção do desfile. Mas não é nem um pouco difícil imaginar que esta hercúlea tarefa tenha sido realizada pelos escravos. Que vergonha para a nação brasileira se isso for verdade. Trabalhadores forçados estruturando, costurando e, no fim, fazendo algo tão lindo. É provável que a beleza do cortejo tenha desfilado moralmente suja de sangue negro. Aliás, o crescimento econômico que o Brasil assistia na época era manchado com o mesmo sangue. Que nunca nos esqueçamos disso. Que as mães negras, que provavelmente trabalharam tão arduamente, nos olhem do Orum hoje e nos perdoem. Erramos.
Com os erros e acertos, chegaram os grandes dias: 2, 3 e 4 de fevereiro de 1786. Os “carros de ideias” (maneira como as alegorias eram chamadas por Soares) estão prontos. As fantasias feitas. O povo aguarda ansioso, do Passeio Público ao Campo de Santana. É chegada a hora de assistir ao grande cortejo!

4º setor: o cortejo sai às ruas

Ao som de modinhas , lundus e tiranas , o cortejo em homenagem ao casamento de João com Carlota e de Maria Vitória com Gabriel saiu às ruas da forma como segue. Tomaremos a liberdade de nomear os trechos do desfile da forma moderna, tal como fossem setores. Também chamaremos os “carros de ideias” de alegorias.
1º setor: Vulcano. Após uma abertura que mostrava um escudo em homenagem a Luís de Vasconcelos, tratava-se de Vulcano, deus romano da metalurgia. Casado com Vênus, deusa da beleza, Vulcano chamava a atenção pela sua feiura. A alegoria mostrava um dragão puxando, por uma corda, uma espécie de caverna, dentro da qual era possível ver ferreiros trabalhando (vejam só: uma alegoria teatralizada em pleno séc. XVIII). A parte externa da caverna soltava fogos de artifício.
2º setor: Júpiter. Deus do dia e da luz, associado ao Zeus da mitologia grega. Pai de Marte e, consequentemente, avô de Rômulo e Remo, construtores da cidade de Roma. A alegoria de Júpiter contava com um cisne mágico puxando uma carruagem ao redor da qual soldados divinos caminhavam.
3º setor: Baco. Deus do vinho e das celebrações. As famosas festas bacantes eram marcadas por bebedeira e divertimento carnal, se é que podemos dizer assim. A alegoria mostrava uma carruagem repleta de árvores silvestres e flores reais. Foliões a seguiam, se fingindo de bêbados, alguns vestindo togas e outros, vejam só, apenas de pequenas roupas feitas de folhas. Afinal, no cortejo (bem como no carnaval), podemos nos dar à lascívia.

4º setor: os Mouros. Esse era o povo habitante do norte da África e praticante da religião islâmica. São pertencentes ao que hoje comumente se chama “mundo árabe”. A alegoria, puxada por quatro cavalos de verdade, simulava uma carruagem árabe, sobre a qual se encontravam sentados um homem fantasiado de imperador mouro e uma mulher fantasiada de rainha moura. Outros foliões representavam a corte desse império. Arabescos e formas curvilíneas ornavam ricamente a obra.

5º setor: as cavalhadas sérias. O setor mais importante do delírio carnavalesco de Soares. Na alegoria (aliás, a maior e mais rica de todas), puxada por 4 cavalos reais, estavam representados tanto Himeneu, deus latino do casamento, quanto personagens representando João, Carlota, Maria Vitória e Gabriel (vale lembrar que os homenageados não estavam presentes; a família real chegaria ao Brasil somente em 1808). Seriam eles os primeiros destaques centrais de nossa história? A linguagem visual da alegoria era um híbrido, uma grande mistura e uma festança em homenagem à cultura romana antiga, a Portugal e Espanha. “Semi destaques” representavam músicos das cortes ibéricas, damas e cavalheiros da mesma, além de personagens latinos mais ou menos parecidos com aqueles do setor dedicado a Baco.

6º setor: as cavalhadas jocosas. Depois do luxo, a derrocada. Assim era o sexto e último setor do desfile. Os foliões representavam doutores e burgueses em geral em situação precária, maltrapilhos e viúvas. A alegoria era pequena, puxada por um jumentinho. Era ornada com ruínas, representadas por pilastras mofadas e cheias de mato e musgos. Ao centro, um homem solitário e mal vestido toca um órgão todo quebrado.
Assim foi o desfile que, mesmo sem que saibamos, está no nosso DNA carnavalesco. As alegorias e foliões foram do início do Passeio Público até o Campo de Santana. Fizeram ali sua apoteose. É possível imaginar que, em um momento de epifania carnavalesca, escravos e senhores, burgueses e nobres, pretos e brancos, homens e mulheres, saudáveis e doentes, todos, sem distinção, tenham seguido e ladeado o cortejo em arrastão e, por alguns momentos tenham vivido o igualitarismo e a alegria que só a celebração popular pode oferecer. Que lindo foi ontem o cortejo. Que lindo é hoje nosso carnaval!

Autores: Thiago Tartaro e André Rangel