PRINCIPAL    EQUIPE    LIVRO DE VISITAS    LINKS    ARQUIVO DE ATUALIZAÇÕES    ARQUIVO DE COLUNAS    CONTATO

Coluna do Pesquisador

Coluna do Pesquisador

O samba é a forma de expressão popular mais legítima e reconhecida do Brasil. Ninguém tem dúvidas do potencial de representatividade que esse ritmo possui. Desde seus tempos de batuque de malandro até o seu ápice, nos anos 60 e 70, o samba manteve uma crescente invejável. Brindou-nos com gênios, na composição e na interpretação, momentos mágicos e muita emoção. Levou o Brasil ao mundo, e, como se fosse uma das frutas do chapéu de Carmem Miranda, fez esse mundo nos engolir com muito prazer. Escolheu como capital a capital. O Rio de Janeiro, nos tempos em que do Palácio do Catete saia os rumos do país, ficou mais importante pelo seu ritmo matriz do que pelo seu caráter político. A Mangueira lembrava mais o Rio de Janeiro que o Getúlio em pessoa... E isso não se pode negar. Cartola tinha muito mais a cara daquele Rio do que o ilustre presidente. Pois bem. Dos anos 10 aos anos 60 o samba apenas cresceu.

Começou reprimido pelo medo, pelo conservadorismo. O Brasil, preso as suas raízes coloniais, parecia ter um gigantesco temor de deixar se render a algum traço cultural oriundo do velho celeiro de mão de obra fácil, a África. O samba, que nasceu nos guetos da cidade, e de fora da cidade, surgia como uma ameaça a um status quo enraizado. O Brasil europeu, dominante, seguia com seu preconceito com a abertura ao novo, ao preto. Pecava por isso. Deixou de aproveitar o samba desde seu início. No cortiço de João Romão o samba já rolava solto, e isso em outros tempos, sem preconceitos, nos contou Aluízio de Azevedo. Esse cortiço pode nunca ter existido, mas retrata perfeitamente a realidade dessa parte da cidade. A parte sem recursos, mas com um baú de criatividade na mente de cada sofredor. Esse é o nascimento de um Rio serelepe, malandro, feliz. A vida do carioca, então, do típico carioca, já rolava pelas sarjetas no sotaque do ritmo astuto do povo do outro lado do Atlântico. Aculturação? Não. Muito pesado. Prefiro chamar de adequação. O samba não foi feito para a África. Foi feito para o mundo. Mas, de todos no mundo, sem dúvida, os cariocas levaram isso para dentro de suas almas. Antes do samba ser samba, o Rio não era Rio.

Mas o amor é assim mesmo. Leva tempo para o orgulho ser vencido e a coragem ser levantada e acumulada a ponto de se entregar à nova paixão. Muitos eram contagiados todos os dias, sucumbiam ao ritmo doce da música. O batuque não tinha preconceito, quem tinha esse tipo de sentimento rancoroso eram os medrosos de uma falsa elite cultural. João Romão já havia se rendido, até mesmo seu vizinho... Mas os barões não. Atrapalhavam a formação de uma legítima identidade do povo carioca. Aliás, quais cariocas? Não podiam honrar essa nomenclatura. Carioca que é carioca, sem parafrasear Luis Fernando Veríssimo, gosta de liberdade, da democracia, do respeito ao novo, do culto ao novo, até, eu diria. Os repressores não eram cariocas, sequer representavam as raízes do Brasil. Consideremos, se muito, ervas daninhas da cultura brasileira. E assim prosseguia a dor de cotovelo dos medrosos.

Mas o tempo passou. O que deve ser, normalmente, vem a ser. Os amantes do samba, então, poderiam perfeitamente serem chamados de resistentes do samba. O ritmo já tomava conta da cidade. Os medrosos, por um acaso, eram também os poderosos... Quem dera o tivesse feito da coragem o seu lema ao invés da ordem e do progresso... Oxalá que ainda faça. Ora, o Rio mostrava seu caráter politizado e sua vocação para cidade das decisões, normalmente, “do contra”. E apenas em uma cidade com um posicionamento político como o nosso, o samba poderia ter germinado em sua plenitude. E germinou mesmo...

Demorou, mas os opressores também não resistiram ao batuque do povo. Não quiseram dar seus loiros braços a torcer, inicialmente, é claro, mas passaram a pregar a paz armada. E assim foi. O samba, que já havia fincado raízes fortes, crescia em forma de Mangueira. E que Mangueira... Surgiram os bambas. O medo diminuía, mas a dor de cotovelo não. O que fazer?

A solução não demorou a aparecer, ora pois. Não sei se leram Gramsci ou resolveram, repentinamente, pensar. O fato é que os antigos opressores resolveram passar a aproveitar a onda do samba. Não se pode com eles, aproveite-se deles... De forma orgânica, invadiram o mundo do Rio de cá para trazer seus valores do Rio de lá. E tiveram algum êxito. A Mangueira e seu povo resistiram bravamente. O samba conquistou seu espaço com cara de bons amigos e, nos anos 30, saiu dos guetos, sua casa, para ensinar o restante da cidade como ser feliz. E como mostrou... Surgiam as instituições que tinham como função ensinar o restante da cidade como ser alegre, aliás, desculpem-me, como sambar... As escolas de samba chegavam, em ritmo de improviso e, logo de cara, encantaram. Foi a partir desse momento que o Rio iniciou seu apogeu: 1930.

E assim foi se criando um Rio menino ainda. O samba como pai, as escolas como tias, a natureza maravilhosa como mãe... Netinhos, como a bossa nova, foram aparecendo. Mas, sem duvida, o que mais ganhou destaque foi o samba aculturado. Por que aculturado? As grandes e luxuosas sociedades se renderam ao samba, pararam de tocar suas marchinhas, e avançaram para escolas de samba. Os traços da cultura colonizadora se misturaram com o ritmo que eternizaria o festival. A Mangueira e a Vai Como Pode fizeram escola para as escolas... Uma delas vira Portela. Outras foram chegando. O evento foi ganhando corpo e o samba de enredo surgiu.

Esse gênero mágico do samba se firmou como representação máxima do Rio de Janeiro. Uma vez ao no, no Carnaval, os homens do samba da cidade inteira se reuniam em um só lugar para mostrar suas obras primas a quem quisesse ver. E o preconceito foi indo por terra. Como resistir? O Rio parava... as escolas passavam, ... o Rio continuava, mais feliz e alegre, mais serelepe e malandro que nunca, seu caminho. O antigo cortiço do velho Romão e da boa Pombinha havia invadido o restante da cidade. Temas passeavam pelas avenidas da cidade, encantando a ricos e plebeus, misturando povo e elite, misturando as raças, as preferências e os gostos. Cada desfile era um verdadeiro rio que passava bem no meio do coração de cada carioca. O Rio sem desfiles de Carnaval? Como? Impossível!

Um Rio já adulto e desenvolvido, mais politizado que nunca, via seu povo mostrar o seu valor naqueles desfiles. E essa foi a parte que dediquei para mostrar a evolução do samba de enredo, em breves linhas e com objetivos pré-definidos. Desse ponto em diante, já maduro, o samba de enredo venceu todos os obstáculos, derrubou fronteiras e alcançou o Brasil. Conquistou intelectuais, empresários, até mesmo religiosos, por que não dizer isso? O mundo reconheceu seu menino travesso. Deus, que eu dia fora o engenheiro do mundo, no Rio, se tornou Carnavalesco e Compositor... Nesse ritmo maduro chegamos facilmente aos anos 60 e 70. O samba era o Rio, o Rio era o samba. Se não era mais a capital do mundo político brasileiro, restava como consolo ser a capital mundial do samba. E que consolo... Não havia beleza arquitetônica que derrubasse a natureza do Rio, muito menos seu samba.

Mas a parábola começa a se manifestar. E é nesse momento que entro com a minha proposta aos leitores dessa coluna. Dos anos 80 para cá entramos nitidamente em um processo cruel de decadência. O ritmo é lento, o que nos faz sofrer ainda mais. O Rio decaiu, foi perdendo o seu espírito serelepe. A idade? Não. Aquele Rio era eterno. Prefiro acreditar que a nossa alma se perdeu, nossa magia se foi. Mas, não por acaso, o samba foi decaindo junto. Não apenas o samba, mas seu gênero mais sofisticado e elegante, o samba de enredo. Não estou aqui para apresentar causas e conseqüências, ainda, apenas para propor a reflexão de quem ama o samba. O fato é que o samba de enredo vem perdendo seu espaço e seu papel de protagonista na cultura do Rio de Janeiro. Muito disso tem a ver com o processo de afastamento do povo, de quem fazia o Carnaval, com o processo de mercantilização da festa, com a mudança de foco das escolas, de seus propósitos e seus objetivos. E será isso que discutiremos aqui na próxima coluna.

Escrevo essa coluna como minha estréia nesse espaço. Portanto, resolvi iniciar um debate a respeito de um tema com o qual trabalharei nas próximas colunas. Esse será um espaço próprio para levantar questões para a reflexão de quem vive o universo do samba, e essa será missão que vou encarar como minha aqui. Não vou dar respostas nem propor soluções imediatistas, apenas fomentar, na cabeça do leitor, o questionamento de certos pontos, atitudes, comportamentos e acontecimentos no mundo carnavalesco. Eu levanto as bolas para que todos nós possamos, cada um em seu espaço, através da reflexão, criar um Carnaval que volte a ser a cara do Rio, aliás, que determine qual será a cara do Rio. Rio e samba estão ligados diretamente. Sem o sucesso de um, não haverá o êxito do outro.

Espero que essa coluna seja capaz de abrir uma série de discussões nas quadras, barracões, rodas de samba, bares, encontros, e, por que não, em cada esquina da cidade. Pois um dia, no apogeu do samba, no sinal da Presidente Vargas, o que mais se escutava era sobre os cortes dos sambas... Que voltemos no passado para regermos o futuro.

Até a próxima semana!

Pesquisador

pesquisador@webpim.cc