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UMA PROPOSTA PARA O JULGAMENTO DE SAMBA-ENREDO EM SÃO PAULO
    

10 de março de 2023, nº 64

UMA PROPOSTA PARA O JULGAMENTO DE SAMBA-ENREDO EM SÃO PAULO
por Bruno Malta

Lista de ações que acredito que teriam eficácia numa melhora para o quesito de maior importância no desfile de escola de samba no sambódromo do Anhembi 



INTRODUÇÃO 

 

Todos nós sabemos que o principal problema do julgamento em São Paulo é que o jurado não tem direito a achar. Ano após ano, repetimos uma situação óbvia. A pretendida avaliação objetiva onde as falhas são apontadas de forma inquestionável transformou o resultado da apuração em algo digno de risada na terça-feira gorda. Apesar do caos ser generalizado, acredito que o quesito que mais sofre com esse conceito é o samba-enredo. Historicamente, já é difícil termos bons julgamentos na cidade, mas, recentemente, ficou impossível. O principal motivo é que o atual movimento de notas claras e defeitos evidentes restringe a capacidade de enxergar defeitos subjetivos — premissa básica de uma avaliação de uma trilha sonora desse perfil. Afinal, eu e você podemos discordar sobre a qualidade de alguma composição e está tudo bem. É normal. O ponto é que cabe a nós — cada qual com sua visão -é explicarmos com embasamento os motivos pra tal opinião. Ou seja, isso deveria acontecer também nas justificativas das notas lidas pelo locutor Zulu. 

 

POSSIBILIDADES DE MELHORA 

 

Quando você escreve uma redação numa prova ou concurso, o próprio texto é a sua defesa. A forma como ele foi desenvolvida, como você tratou a temática e até as imagens que criou para fomentar o argumento…tudo é analisado por alguém que só tem o posto no papel como resposta. Assim sendo, a maneira com que ele será interpretado e será julgado — através de nota ou comentário — por quem analisa, não está em discussão. 

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No Carnaval, isso DEVERIA ser REGRA para o julgamento de um quesito desse porte. Afinal, estamos falando de um quesito onde metade da nota está — ou no mundo ideal necessitaria estar — presente apenas na letra do samba. Ou seja, na forma como a história do tema escolhido é narrada na trilha-sonora.  
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Com isso exposto, o primeiro ponto capaz de ser melhorado é bem óbvio. 

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  1. NÃO pode existir defesa de letra. É a antítese de um julgamento. Se você defende, dá pra brecha para que se torna uma disputa de visões. Ou seja, a sua opinião (a da escola em julgamento) contra a de quem supostamente tem condição de te avaliar (o jurado). É como você julgasse o jurado como incapaz de entender o que você quer dizer na sua letra sem um contexto mais amplo. É uma visão LIMITADA da mente de quem supostamente tem condição de ser o especialista no assunto. Está ERRADO.
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Um outro desvio evidente que prejudica a avaliação mais coerente do quesito é a predileção dos comandantes da instituição que gere os desfiles pelo perfil “Norueguês no Carnaval” para ser jurado. ''

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Na visão torta e EQUIVOCADA desses dirigentes, alguém que não conhece as escolas de samba, as comunidades, os perfis musicais de quem canta é mais gabaritado- e, principalmente, isento! — que um samba que vive a festa o ano inteiro. 

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Essa premissa é tão sem lógica que cria um outro viés. 

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O medo. 

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Como o convidado não conhece e vive o evento, passa a evitar grandes embates e prefere sair bem com geral dando a nota máxima para todas as escolas criando o nivelamento por baixo e prejudicando quem tem os melhores sambas na comparação com outros de qualidade mais questionável. 

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Portanto, aí vão alguns itens que compõe o segundo pilar dessa trinca. 

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2. Sair dessa mediocridade de julgamento de norueguês e trazer pessoas que ACOMPANHEM a festa durante o ano facilitando o acesso delas aos seguintes itens essenciais para o entendimento de como essa música funciona. 

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2.1. Ouvir o CD. 

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A pessoa que mais precisa ouvir a gravação musical disponibilizada pela Liga é o jurado. É nela que o máximo que aquela música pode entregar dentro de um estúdio. Além de não ter a incessante repetição, também podemos enxergar o potencial máximo da obra em termos de produção, valorização dos desenhos melódicos e, principalmente, no casamento entre intérprete e obra.

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2.2. Ir a festa do CD 

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Sim, o jurado precisa conhecer a evolução dessa obra no ao vivo e na festa do CD, apesar do tempo curto de apresentação, temos um bom parâmetro para entender como está, ainda no início da temporada de pré-carnaval, o entrosamento entre comunidade, bateria, cantor e samba. 

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2.3. Ir a ensaios de quadra e ensaios técnicos no Anhembi para ver como a obra está sendo treinada. 

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Essa presença constante nos ensaios de uma escola traz a condição de analisar as mudanças que estão sendo feitas para trazer o maior potencial possível de cada composição. Um samba que não tem grande rendimento em determinada fase de ensaios pode ir crescendo a medida em que vai encorpando no entrosamento entre o trabalho da ala musical e o canto da comunidade. Notar isso também ajuda a antecipar possíveis melhoras no grande dia. 

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2.4. Enfim, o grande dia. 

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Diante desse cenário mais completo, com o jurado tendo passado por todas as fases de maturação do que irá avaliar, o mesmo teria muito mais condição de expor com mais técnica o seu julgamento e poderia trazer um julgamento de samba-enredo que avaliasse a letra, a melodia, mas também pesasse o que uma comunidade sintonizada pode fazer, assim como uma boa bateria unida a um bom carro de som pode trazer de evolução e criatividade no trabalho melódico. 

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O que fecha a trinca que prejudica gravemente as notas na apuração é como esse jurado é instruído. 

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O treinamento do júri não pode ser apenas um vídeo que mostra o balizamento do quesito com um breve resumo do que é ou não avaliado. Isso é motivo de piada em alguns casos e acaba deixando o instruído ainda mais confuso. 

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O primeiro ponto numa entrevista para contratação de um jurado deveria ser outro que não apenas o currículo, mas, sim, a demonstração de que ele é capacitado na diferenciação do que é um samba bom e do que não é um samba de qualidade. 

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3. O item principal para treinamento deveria ser fazer com que o próprio jurado mostre através de avaliações de sambas antigos que ele detém, sim, capacidade de distinguir o que é bom e o que é ruim. 

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3.1. Nesse cenário, os presidentes — ou os responsáveis pelo curso — PODERIAM passar uma lista de sambas clássicos — daqueles que todo mundo gosta — e o jurado avaliaria positivamente (ou até negativamente) através de motivos técnicos: qualidade de rimas, desenhos melódicos, síncope épica, interpretação coerente do tema e etc. Inclusive, no que tange a esse teste específico, seria necessário até justificar uma eventual nota dez, afinal, o importante aqui é a demonstração da capacidade técnica do entendimento qualitativo de uma obra com grande impacto na história. 

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3.2. Também se faz necessário o lado inverso.  

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Passar uma lista de sambas que não necessariamente foram bem avaliados historicamente para que o avaliador também consiga apresentar uma visão técnica do que aquela composição não trouxe de bom e até o que trouxe e não foi bem-visto na época em que foi posto em julgamento. Isso deixaria o avalista mais preparado para demonstrar que nem sempre a visão-comum é a mais correta no âmbito técnico e racional. 

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Você que chegou até aqui certamente está pensando: “ok, sabichão, você já falou que as escolas não podem defender o samba, que o jurado não pode ser alheio ao evento e que ele precisa mostrar uma capacidade prévia — além do currículo — para julgar, mas vem cá, cadê a sua proposta de critérios?” 

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Pois então, eu tenho uma! E veja só que curioso: Ela não é tão diferente da já presente no atual manual.  

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O que muda é o ponto de partida inicial permitindo um julgamento menos amarrado e mais subjetivo — algo que precisa ser o norte básico de qualquer mudança. Dito isso, segue aí o meu critério de julgamento ideal: 

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Critérios de Julgamento 

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Para que possamos voltar a priorizar a letra e a melodia e deixar de lado a ideia de que o enredo estar setorizado no samba é preciso que se volte a criar dois sub-quesitos ao quesito principal. Os tradicionais e conhecidos Letra do Samba e Melodia. Com a nota mínima sendo 8 e a máxima sendo 10, os dois quesitos fracionados teriam notas entre 4,0 e 5,0 pontos. 

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Letra do Samba 

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  • - Premissas básicas na avaliação 

  • - Adequação e fidelidade 

  • - De 0,1 a 0,5. 

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A letra precisa estar entrosada ao enredo, mas não necessariamente precisa contar o que está sendo visto em forma cronológica. Os setores da temática podem estar embaralhados desde que a história contada pela letra seja coerente, coesa e, principalmente, não faça contradição na narrativa. Algo que aparece na estrofe inicial não pode se repetir no fim apenas pra servir como incentivo ao canto. É preciso narrar o enredo! 

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  • - Riqueza poética 

  • - De 0,1 a 0,5 

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Contar o enredo é só metade do que uma letra precisa entregar num samba-enredo de qualidade. Criar imagens visuais de impacto, surpreender pelo vocabulário e conseguir extrair algo imprevisível do tema também devem ser levados em conta como algo primordial na defesa de um samba de enredo.  

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Pontos a serem considerados como negativos em riqueza poética: rimas pobres (ex: mim/sim), lista de expressões que apenas servem pra encher a letra (samba curto também pode ser ótimo!) e soluções óbvias que servem apenas como auto exaltação (escola Y é a voz/nome da emoção) sem estar diretamente ligadas ao tema do enredo. 

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Melodia 

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  • - Premissas básicas de avaliação 

  • - Divisão melódica 

  • - De 0,1 a 0,5 

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Samba precisa ser samba. Precisa ter a métrica respeitada pelas rimas sem necessidade de alongamento de notas para o devido encaixe. Necessita ter o momento de síncope onde o épico melódico aparece naturalmente sem ser fundamental que se crie através de alguma bossa ou paradinha de bateria. Além disso, é imprescindível respeitar predileções básicas como acentuações melódicas e figuras rítmicas binárias e quaternárias. 

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  • - Bom gosto de desenhos melódicos e incentivo ao canto e a dança dos componentes 

  • - De 0,1 a 0,5 

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Como exposto acima, um bom samba também precisa causar criatividade. O bom gosto de uma melodia bem desenhada é mais que necessário. Não adianta apenas criar rupturas para impactar, também é preciso que essas variações tonais e melódicas estejam entrosadas com o enredo e, principalmente, entre si. Além disso, o incentivo melódico para o canto e a dança é primordial. A composição não deve causar a sensação de estar travada ou cansando. Isso demonstra que os desenhos não estão incentivando o componente para manter o tom na voz e a empolgação no evoluir. 

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Viram só? O meu problema é muito menos como o critério está escrito — embora acredite, sim, que precisamos de mais subjetividade como deixo claro nos itens de riqueza poética e bom gosto de desenhos melódicos e incentivo ao canto dos componentes — e muito mais com os subterfúgios utilizados para defender o indefensável 

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A defesa de uma letra de samba-enredo, a contratação de pessoas que não conhecem aquilo que julgam, o treinamento que não consegue transmitir o que é uma boa música ou não e, claro, a total ojeriza ao que pode ser gosto pessoal fazem com que o julgamento seja feito através de uma ideia de que não podemos tirar décimo de quem quer que seja. Esse é o grande problema. 

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Na construção desse texto, penso muito que algumas ideias aqui expostas são, sim, utópicas. Não do ponto de vista da realização, afinal, acho tudo plenamente plausível de acontecer, mas, improvável pelas mentes dos dirigentes dessa cidade que sentem pavor da possibilidade de algo que seja apenas uma opinião da qual ele discorda decidir o futuro de um trabalho de 365 dias.  

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Esse terror que paira na cabeça de quem comanda nivela um quesito de fundamento no nível mais baixo possível. As safras ruins se acumulam nos últimos anos e, mesmo com o enorme crescimento plástico da cidade em alegorias e fantasias, a sensação de que nosso desfile está quadrado e chato é cada vez mais constante entre sambistas, carnavalescos (sim, eles também acham!) e grande parte dos participantes dessa festa há muitos anos.  

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Por esses motivos e pelo enorme sentimento de amor que tenho por esse evento, deixo exposta, publicamente, a minha sugestão de julgamento para o quesito que mais me acompanha durante a minha vida. Samba-Enredo é algo que está presente constantemente no meu dia a dia. Seja em fevereiro, julho, novembro ou qualquer mês que seja.  

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Nesse cenário, o que eu mais quero pro Carnaval de São Paulo é que ele me entregue o que sonho todo dia: música de qualidade pra quem o ama. 


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Bruno Malta
Twitter: @BrunoMalta_