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Coluna do João Marcos

MODIFICAÇÕES, FUSÕES E MUTILAÇÕES

2 de novembro de 2011, nº 47, ano VI

Muito já se discutiu sobre reedições. As mais polêmicas são as que envolvem uma escola e o samba de outra. Como uma escola ousa cantar que aí ‘vem a Ilha’... se ela não é a Ilha? Há reedições complexas: este ano, p.ex., a Unidos da Ponte irá reeditar o seu samba de 1989 - um samba fraco, que não tinha a cara da escola na época e causou o seu rebaixamento, depois de vários desfiles seguidos no Grupo Especial, queda esta que teve conseqüências nefastas para a agremiação. Mas até este tipo de reedição eu acho bacana: faz a comunidade relembrar um samba que conhece como a palma da mão, facilitando o canto, a harmonia, quesitos muito complicados nos grupos inferiores.

Vou dizer qual foi a única vez em que eu fiquei com raiva de uma reedição – em 2010, a Tradição resolveu levar o “Rei Senhor, Rei Zumbi, Rei Nagô”. Até aí, nada demais. É um belo samba, como todos os assinados por João Nogueira e Paulo César Pinheiro. O samba original foi apresentado em 1986. Então, qual o problema?

Um membro da escola, um espírito das trevas, deve ter ouvido a obra. Torceu o nariz, obviamente. O samba fugia daquele esquema dos sambas atuais. Não tem nem refrão. Não vai dar certo. Este samba é para aqueles desfiles de antigamente, não serve para os atuais. Mas eu posso dar um jeito nisso aqui – vou pegar essa parte final e fazer um refrão. Isso!

O grande gênio, então, de conhecimento maior do que João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, fez a alteração. O refrão é criado. Artisticamente, é algo como colocar um brinco na orelha da Monalisa.

Teve um ano que a Viradouro quis reeditar o samba do Salgueiro de 1969, sobre a Bahia, e resolveram que seria uma ótima idéia uma eliminatória onde os compositores criariam mais versos, para completar as informações do enredo. Uma ‘meia-reedição’. A idéia foi arquivada, apesar de ainda me dar frio na espinha.

E porque eu estou falando disso? Estou ouvindo, enquanto elaboro este artigo, os sambas da Portela e da Beija-Flor para 2012. Ótimos sambas, destaques da safra que vem por aí, que se não é sensacional, pelo menos tem mais obras interessantes do que a média dos últimos anos. Foram frutos de fusões ou sofreram modificações. Ouço estes, mas o fenômeno ocorreu em quase todos os sambas do Grupo Especial. Algumas, de uma desnecessidade ímpar. Aliás, que diabos é aquela fusão da Ilha?

Mas o que eu quero falar mesmo é da modificação no samba da Portela. Já disse e repito – é um excelente samba, apesar de não ser a obra-prima que muitos apregoam. Vejo o vídeo da gravação do coral para a faixa para o CD e estão lá diversas modificações, todas com o intuito de deixar o samba com a melodia mais ‘para cima’. Foram válidas ou estragaram o samba?

Não é só a Tradição ou a Viradouro que possuem ‘espíritos das trevas’. Toda escola tem um cara para dar essas idéias. Mas poucas escolas têm um Laíla. Muitas vezes, você pega dois sambas para uma fusão, seleciona o melhor de um e o melhor do outro, e o resultado é algo pior do que qualquer um dos dois sambas. A lógica não é a mesma da matemática – numa fusão, 1 + 1 pode ser 0,5. O exemplo maior talvez seja o “Trabalhadores do Brasil”, da Vila Isabel – pegaram dois sambas medianos e construíram uma catástrofe.

A grande dificuldade é quando as obras selecionadas para a fusão usam caminhos ou estratégias melódicas totalmente incompatíveis entre si. Aí vira o samba do crioulo doido – a melodia fica quebrada; a letra, sem sentido. Ai o ‘espírito das trevas’ vai lá, mexe aqui, compõe ali, e o resultado geralmente é terrível.

Um compositor, quando tenta fazer um samba, tem noção do que quer tentar fazer, qual o sentimento que ele quer despertar. Muitas vezes, aquela passagem menos ‘para cima’ é para realçar o que vem depois, para o refrão subir com mais força, ou para realçar um desenho melódico mais interessante. Num samba bem feito, as opções estéticas têm uma coerência. A fusão ou a modificação pode matar essa coerência.

Só quem entende muito de música saca dessas coisas. O “espírito das trevas”, não. Ele vai falar “isso aqui está ‘para baixo’, tem de ficar ‘para cima’, temos de arrumar”. Ou então, ele tem de dar um jeito do samba do amigo vencer e arruma um monte de desculpas para a fusão, quase sempre como se soubesse a técnica para tirar 10 dos jurados. Tem escola que tem de mexer no samba, nem que seja para incluir uma palavrinha. Aí vem a apuração, o samba tira 10, o que não é muito difícil, e o “espírito das trevas” olha o presidente com aquela cara de “tá vendo que eu estava certo?”. É um gênio.

Voltemos para o samba da Portela. Algumas partes que estavam ‘para baixo’ ficaram ‘para cima’. Houve algum prejuízo na qualidade da obra? Sinceramente, ainda não tenho opinião definida. Mas eu fico pensando no que aconteceu - na mobilização dos internautas e dos portelenses em geral para este samba ganhar. Eles não estavam preocupados com as partes ‘para baixo’. Eles amaram o samba com as partes ‘para baixo’. Com certeza, os compositores, que são grandes compositores, colocaram aquelas partes ‘para baixo’ porque queriam aquelas partes ‘para baixo’, por opção estética, para realçar as explosões, variar mais a melodia e deixar tudo ficar mais bonito. Mas aí, alguém disse – temos de modificar isso. E modificaram.

A idéia de modificar um samba clássico causa repulsa em quase todos os que amam os sambas-enredos. E se eles, os “espíritos das trevas”, ousam em querer mexer em vacas sagradas como “Bahia de Todos os Santos” e “Rei Senhor, Rei Zumbi, Rei Nagô”, mexer nos sambas atuais é pinto. Imagine o diretorzinho imaginando como jogar ‘para cima’ os trechos mais melodiosos dos sambas de Silas de Oliveira.

Aí eu coloco para escutar Tradição 1986, versão original. “Rei Senhor, Rei Zumbi, Rei Nagô” é mais bonito sem refrão. Talvez esse tal de João Nogueira soubesse uma coisinha ou outra de samba...