Elza
Soares foi uma das figuras mais extravagantes, talentosas e de um
estilo único na música popular brasileira. Nasceu em uma
família muito humilde, composta por dez irmãos, na favela
da Moça Bonita, atualmente Vila Vintém, no bairro de
Padre Miguel, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, e ainda pequena
mudou-se para um cortiço no bairro da Água Santa, onde
foi criada.
É considerado como
marco inicial de sua carreira sua famosa participação,
aos 21 anos, no concurso musical do programa radiofônico Calouros
em Desfile, em meados de 1953, que era apresentado pelo compositor Ary
Barroso, na Rádio Nacional.
Elza, confiante em seu
talento para cantar, se inscreveu para o programa e foi recebida pelo
auditório e por Ary Barroso com gargalhadas. A então
menina usava um vestido da mãe, aproximadamente vinte quilos
mais gorda, ajustado com vários alfinetes de fralda, fazendo um
penteado de maria-chiquinha no cabelo. Quando Elza subiu ao palco, Ary
tentou ridicularizá-la, perguntando-lhe:
- “De que planeta você veio, minha filha?”
E Elza rebateu:
- “Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome”.
Depois, Elza cantou
“Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves, e ganhou a nota
máxima do programa. Ary, então, anunciou que, naquele
exato momento, acabava de nascer uma estrela. Elza ganhou um pouco de
dinheiro pela participação, e o utilizou para comprar os
remédios de um de seus três filhos, que estava com
pneumonia. Sua participação bem-sucedida no programa de
Ary Barroso não se traduziu em oportunidades imediatas de
trabalho, inicialmente. Elza passou a cantar no grupo musical de seu
irmão Ino, em apresentações em festas, bailes,
casamentos e eventos sociais em geral. Nem sempre ela se apresentava,
pois alguns clubes não admitiam uma cantora negra no palco.
A mulata surgiu
profissionalmente para a música em 1959. Por intermédio
da cantora Sylvinha Telles apresentou Elza a seu marido, Aloysio de
Oliveira, produtor da Odeon, que a convidou para um teste, a partir do
qual ela foi contratada para o seu primeiro registro de uma grande
gravadora: “Se Acaso Você Chegasse”, de autoria de
Lupicínio Rodrigues, que obteve estrondoso sucesso nas
rádios.
Dona de uma voz rouca e
rítmica, aliada aos seus scats (uma técnica de canto
criada por Louis Armstrong que consiste em cantar vocalizando sem
palavras ou com palavras sem sentido e sílabas), deu uma forma
inteiramente nova aos dois estilos de samba que se conhecia quando ela
surgiu, o samba de raiz e a bossa nova, criando um estilo novo que
chegou mesmo a ser chamado de “bossa negra” para implicar
com a bossa “branca” feita pelos riquinhos da zona sul do
Rio.
Elza experimentou
emoções fortes em sua trajetória. Da
miséria à riqueza, do assédio ao descaso da
mídia, da paixão ao abandono. Ganhou fama, sucesso e
dinheiro; obteve elogios de Louis Armstrong, e, em 1962, se casou com
Garrincha, o mito do futebol brasileiro, com quem viveu uma intensa
paixão. Suportou o alcoolismo do craque e foi condenada pela
opinião pública, que julgava ter sido sua a culpa de
Garrincha ter morrido pobre e desamparado.
Mesmo com tanta
perseguição, no auge da carreira, nos anos 60, Elza
Soares gravou e fez muito sucesso com discos clássicos como O
Máximo em Samba (1967), Elza Soares & Wilson das Neves
(1968), uma série de três álbuns com Miltinho
(Elza, Miltinho e Samba), e, em 1972, convenceu a sua gravadora para
dividir um LP com o então estreante sambista Roberto Ribeiro
– Sangue, Suor e Raça.
A cantora foi pioneira, em
1969, ao aceitar o desafio de cantar samba-enredo de uma escola na
avenida, quando a prática não era comum entre as
mulheres. Com o enredo “Bahia de Todos os Deuses” (samba de
Bala e Manuel Rosa), Elza Soares, já consagrada sambista, foi
convidada pela Acadêmicos do Salgueiro para ser a primeira
puxadora de sambas de uma escola do Rio de Janeiro. Além de
Elza, o carro de som era formado por Noel Rosa de Oliveira e Carlinhos
Pepé. Foi campeã na estreia e ajudou o Salgueiro a
conquistar seu quarto título.
Logo depois, aproximou-se da
Mocidade Independente de Padre Miguel, ao gravar, em compacto,
“Rio Zé Pereira”, de Edu e Tião da
Roça, samba que a mulata ajudou a defender na avenida no
carnaval de 1973. No ano seguinte, estourou nas paradas de sucesso com
“Salve a Mocidade”, de Luís Reis. A música
fez parte da trilha sonora da novela O Rebu (1974).
Em Padre Miguel, bairro onde
nascera, a sambista viveu a fase em que a Mocidade Independente
começava a se modernizar, ao contratar o carnavalesco Arlindo
Rodrigues. Elza fez dobradinha com o puxador Ney Vianna por quatro
anos, ao cantar os sambas “Festa do Divino” (Campo Grande,
Nezinho e Tatu, no carnaval de 1974), “O mundo fantástico
do Uirapurú” (Campo Grande, Nezinho e Tatu, em 1975) e
“Mãe Menininha do Gantois” (Djalma Crill e Toco, em
1976). Afastou-se da escola em 1977 e passou a animar festas e bailes
de carnaval durante o período da folia.
Em 1979, teve uma
experiência no carnaval de Niterói, ao cantar
“Afoxé”, de Heraldo Faria e João
Belém, pela Acadêmicos do Cubango. No mesmo ano, na
Marquês de Sapucaí, cantou o samba “Das Trevas ao
Sol, uma Odisseia dos Carajás”, de Leleco e Elinto Pires,
pela Unidos de São Carlos (atual Estácio de Sá).
Elza Soares viveu a fase
áurea de sua carreira gravando discos memoráveis na
Odeon, entre 1959 e 1973. Logo em seguida, foi contratada pelo selo
Tapecar onde também gravou bons trabalhos, entre 1974 e 1979.
Depois disso, praticamente sumiu dos meios de comunicação
e das paradas de sucesso. Nos anos 80, ficou sem emprego e chegou a
pensar em desistir de cantar. Foi quando Caetano Veloso a convidou para
gravar o samba-rap “Língua”, em seu disco Velô
(1984), que Elza voltou a ser notada pela mídia.
A partir daí retornam
os convites para gravações. Em 1985, foi convidada pela
União da Ilha do Governador a defender o samba “Um enredo,
um herói, uma canção”, de Aurinho da Ilha e
Didi. A artista chegou a gravar o disco oficial, mas não cantou
no sambódromo da Sapucaí. No mesmo ano, participou do
disco O Rock Errou, do roqueiro Lobão, dividindo os vocais na
faixa “A Voz da Razão” (Lobão e Bernardo
Vilhena). Logo em seguida, Caetano e Lobão patrocinaram um disco
coroando sua volta: Somos Todos Iguais, pela gravadora Som Livre.
Em 1986, perdeu o
único filho que teve com Mané Garrincha –
Garrinchinha – num acidente de carro, em 1986. Após mais
essa tragédia, a cantora entrou em depressão e se afastou
novamente da carreira artística. O trabalho musical foi retomado
com a participação do CD Casa de Samba (1996), quando
voltou a aparecer mais constantemente na mídia. Gravou novo
álbum solo após nove anos, Trajetória (1997),
conquistando o Prêmio Sharp de Melhor Cantora de Samba, e depois
o independente Carioca da Gema Ao Vivo (1999).
Em 2000, ela voltou a
defender um samba enredo na avenida. Vinte anos depois de
“Afoxé”, Elza Soares retornou à
Acadêmicos do Cubango, onde cantou “Por uma
Independência de Fato”, de Altair, Celso Tropical, Pepe,
Rolian do Cavaco e Willian. A mulata finalmente estreava em um carro de
som na Marquês de Sapucaí.
Quem já viu a energia
de Elza Soares no palco pode dizer sem exagero que ela não fica
a dever, comparada às maiores divas da música popular do
planeta. Nos anos 2000, recebeu o prêmio Melhor Cantora do
Milênio pela BBC em Londres, passando a ser considerada “a
voz do milênio”.
Mas não foi só
de música que viveu Elza Soares. Amiga pessoal de Amácio
Mazzaropi, ator e cineasta que foi um dos maiores nomes da
comédia brasileira, ela chegou a participar de três de
seus filmes entre os anos 1960 e 1970. O primeiro deles foi O Vendedor
de Linguiça, de 1962. Elza aparece no final do filme, na cena em
que canta “Não Ponha a Mão” (de Mult,
Arnô Canegel e Bucy Moreira) durante uma festa de rua. A parceria
foi retomada três anos depois, em O Puritano da Rua Augusta. No
filme, Elza entoa “O Neguinho e a Senhorita” (Noel Rosa de
Oliveria e Abelardo Silva), numa cena em que se apresenta em um
nightclub. A terceira e última parceria foi em Um Caipira em
Bariloche, de 1973. A participação de Elza se dá
na abertura do filme, cantando “Rio, Carnaval dos
Carnavais”, gravado no Cristo Redentor. O samba, de autoria de
Padeirinho, Nílton Russo e Moacir, foi enredo da
Estação Primeira de Mangueira no carnaval de 1972.
Elza também participou
de filmes que não tiveram o envolvimento de Mazzaropi. Seu
primeiro crédito no cinema foi em 1960, em Briga, Mulher e
Samba. O filme gira em torno da indústria fonográfica, ao
acompanhar um rapaz que sonha em se tornar compositor no Rio de
Janeiro. Ela divide uma cena com o cantor e compositor Monsueto
Menezes, cantando “Ziriguidum”, de autoria do sambista.
Ela também apareceu em
A Morte em Três Tempos, dirigido por Fernando Coni Campos em
1964, que acompanha a investigação do assassinato de uma
mulher. Mais recentemente, ela pôde ser vista nos filmes Chega de
Saudade, de Laís Bodanzky, e em História Antes de Uma
História, animação para a qual emprestou a voz.
A cantora foi enredo da
Unidos do Cabuçu, pelo Grupo C (quarta divisão), no
carnaval de 2012, com o samba “Cabuçu Dá a Elza na
Avenida!”, de Sylvinho, Jefferson, Lair e Laércio. Em
2013, Elza Soares recebeu homenagem do Bola Preta de Sobradinho,
tradicional agremiação do Distrito Federal, com o enredo
“Elza Soares – Planeta Fome, Nasce uma Estrela!”.
A justa homenagem da escola
do coração viria em 2020, sendo o tema da Mocidade
Independente de Padre Miguel, no desfile “Elza Deusa
Soares”.
A cantora morreu aos 91 anos,
de causas naturais, em 20 de janeiro de 2022. Na mesma data do
falecimento de Garrincha em 1983 e no dia de São
Sebastião, representado no sincretismo religioso por
Oxóssi, o orixá que rege a sua Mocidade.
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Sua
carreira de cantora teve início nos anos 50. Como
intérprete de samba-enredo, começou na Acadêmicos
do Salgueiro, em 1969
1969 – Acadêmicos do Salgueiro
1973 a 1976 – Mocidade Independente de Padre Miguel (com Tião da Roça e Ney Vianna)
1979 – Unidos de São Carlos
1979 – Acadêmicos do Cubango (desfile na Amaral Ferrador, em Niterói)
1985 – União da Ilha do Governador (gravou o samba no disco mas não cantou na avenida)
2000 – Acadêmicos do Cubango
GRITO DE GUERRA: Fala nação verde e branca... Niterói. Só vai dar Cubango! Olha eu aí! (em 2000).
CACOS DE EMPOLGAÇÃO:
Não era muito afeita a cacos. Fazia a chamada com as primeiras
palavras dos versos do samba. Quando entrava o refrão, falava
“no gogó moçada”.
PREMIAÇÕES:
Título de doutora Honoris causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2019)
Estandarte de Ouro: 2020 (personalidade)
Troféu Sambario: 2020 (personalidade)
DISCOGRAFIA SOLO:
LP Se Acaso Você Chegasse (Odeon, 1960)
LP A Bossa Negra (Odeon, 1960)
LP O Samba é Elza Soares (Odeon, 1961)
LP Sambossa (Odeon, 1963)
LP Na Roda do Samba (Odeon, 1964)
LP Um Show de Elza (Odeon, 1965)
LP Com a Bola Branca (Odeon, 1966)
LP O Máximo em Samba (Odeon, 1967)
LP Elza, Miltinho e Samba (Odeon, 1967)
LP Elza Soares, Baterista: Wilson das Neves (Odeon, 1968)
LP Elza, Miltinho e Samba - vol. 2 (Odeon, 1968)
LP Elza, carnaval & Samba (Odeon, 1969)
LP Elza, Miltinho e Samba - vol. 3 (Odeon, 1969)
LP Samba & Mais Sambas (Odeon, 1970)
“Maschera negra / Che meraviglia” (compacto simples / lançado na Itália, 1970)
LP Elza Pede Passagem (Odeon, 1972)
LP Sangue, Suor e Raça (Odeon, 1972) - c/ Roberto Ribeiro
LP Elza Soares (Odeon, 1973)
LP Elza Soares (Tapecar, 1974)
LP Nos Braços do Samba (Tapecar, 1975)
LP Lição de Vida (Tapecar, 1976)
LP Pilão + Raça = Elza (Tapecar, 1977)
LP Senhora da Terra (CBS, 1979)
LP Elza Negra, Negra Elza (CBS, 1980)
“Som, amor trabalho e progresso / Senta a pua” (compacto simples / RGE, 1982)
“Alegria do povo / As baianas” (compacto simples / Recarey, 1985)
LP Somos Todos Iguais (Som Livre, 1985)
LP Voltei (RGE, 1988)
CD Trajetória (Universal Music, 1997)
CD Carioca da Gema - Ao vivo (1999)
CD Do Cóccix Até o Pescoço (Maianga, 2002)
CD Vivo Feliz (Tratore, 2003)
CD Beba-me - Ao vivo (Biscoito Fino, 2007)
CD A Mulher do Fim do Mundo (Circus, 2015)
CD Deus É Mulher (Deckdisc, 2018)
CD Planeta Fome (Deckdisc, 2019)
DISCOGRAFIA DE CARNAVAL:
LP Sambas Enredo Grupo 1-A 1985 (faixa União da Ilha)
CD Sambas Enredo Grupo A 2000 (faixa Acadêmicos do Cubango)
Alguns sambas enredo gravados por Elza
Soares:
“O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” (LP O Máximo em Samba, 1967)
“Bahia de Todos os Deuses” (LP Elza, Carnaval e Samba, 1969)
“Heróis da Liberdade” (LP Elza, Carnaval e Samba, 1969, e LP Somos Todos Iguais, 1985)
“Lendas e Mistérios da Amazônia” (compacto, 1969)
“Lendas do Abaeté” (compacto, 1972)
“Rio Zé Pereira” (compacto, 1972)
“Rio Carnaval dos Carnavais” (LP Elza Pede Passagem, 1972)
“Mangueira em Tempo de Folclore” (compacto, 1973)
“Aquarela Brasileira” (LP Elza Soares, 1973)
“Festa do Divino” (compacto, 1974)
“Festa do Círio de Nazaré” (LP Elza Soares, 1974)
“Lendas e Festas das Yabás” (LP Nos Braços do Samba, 1975)
“Afoxé” (LP Senhora da Terra, 1979)
FILMOGRAFIA:
Briga, Mulher e Samba (1961, dir. Sanin Cherques)
O Vendedor de Linguiça (1962, dir. Amácio Mazzaropi)
A Morte em Três Tempos (1964, dir. Fernando Coni Campos)
O Puritano da Rua Augusta (1965, dir. Amácio Mazzaropi)
Um Caipira em Bariloche (1973, dir. Amácio Mazzaropi)
Chega de Saudade (2008, dir. Laís Bodanzky)
História Antes de Uma História (2012, dir. Wilson Lazaretti)
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MAIS FOTOS DE ELZA SOARES
Elza no desfile da Mocidade de 2003 (E) e no início
dos anos 70 (D)
No auge do casamento com Garrincha, nos anos 60
Em dueto com Jamelão
Capa do disco Elza Carnaval e Samba Vol 1
(1969). Na foto, a cantora veste a fantasia com a qual desfilou
cantando no Salgueiro no carnaval do mesmo ano
Elza e Caetano Veloso na época da
gravação do lançamento do disco Velô (1984)
em que os dois cantam o samba-rap "Língua", que marcou a volta
de Elza ao disco
Elza soltando a voz em 1965
Elza foi muito presente nos programas de auditórios de televisão na década de 70
Encontro entre Elza Soares e Louis Armstrong durante a Copa do Mundo no Chile em 1962
Elza puxando "Bahia de Todos os Deuses" no
desfile do Salgueiro em 1969. Ao seu lado, o cantor e compositor Noel
Rosa de Oliveira
Elza Soares ousou apadrinhar um jovem cantor de
nome Roberto Ribeiro no início dos anos 70. Mesmo a contragosto
da gravadora Odeon, ambos dividiram um disco em 1972
Além de Salgueiro, Mocidade e Cubango,
Elza também cantou na avenida samba-enredo pela Unidos de
São Carlos (hoje Estácio de Sá),em 1979
Elza, ao lado de sua mãe, na favela de
Moça Bonita, Vila Vintém, Zona Oeste da cidade do Rio de
Janeiro. Foto provavelmente tirada nos anos 50. Acervo Globo
Elza cantando "O Neguinho e a Senhorita", durante o filme O Puritano da Rua Augusta (1965), dirigido por Amácio Mazzaropi
Elza, na abertura do filme Um Caipira em Bariloche (1973), com cenas gravadas no Cristo Redentor
Monsueto (de braços abertos e camisa
listrada) e Elza Soares (no centro da imagem), em cena do filme Briga,
Mulher e Samba (1961)
Lobão (à direita) também
foi um dos responsáveis pela volta de Elza Soares às
gravações
Elza puxando o samba "Mãe Menininha do Gantois" pela Mocidade Independente de Padre Miguel no carnaval de 1976
Essa nega tem poder. Elza recebendo justíssima homenagem na sua Mocidade no carnaval de 2020
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