O CRIADOR DE TUDO
O Criador
da Primeira Escola de Samba - Ismael Silva
Um
mestre centenário
O criador das escolas de samba
veio ao mundo no dia 14 de setembro de 1905 em Jurujuba,
Niterói-RJ. Filho de Benjamim da Silva e Emília Corrêa Chaves,
aos três anos seu pai faleceu. Seu Benjamim trabalhava como
cozinheiro de um hospital, e deixou sua esposa sem recursos para
criar seus cinco filhos pequenos. D. Emília apelou para os
parentes, que ficaram cuidando de seus quatro filhos mais velhos
e mudou-se para o Rio de Janeiro, no bairro do Estácio, com o
caçula Ismael, para tentar a vida como lavadeira.
Aos sete anos, Ismael descobriu que queria estudar. Como sua mãe
não atendia a seus apelos de levá-lo à escola, o jovem garoto
resolveu seu problema sozinho, de acordo com seu próprio
depoimento:
"(...) um dia, sem ninguém saber, entrei pelo colégio
adentro (...). Cheguei na primeira sala, que era da diretora e
tal, e ela me perguntou o que eu queria. Eu disse que queria
estudar. Tinha fome de saber, eu quero saber ler e tal... Então
se criou um caso: a diretora me chamou... parou as aulas e as
professoras vieram para assistir aquilo... era uma coisa
diferente...". Matriculado e feliz, Ismael conta que
foi um aluno muito aplicado; suas notas eram as mais altas da
escola e os professores o escolheram como monitor para ajudar os
colegas com dificuldade.
Durante sua juventude, Ismael morou em outros bairros (Rio
Comprido e Catumbi), mas voltou ao Estácio, na mesma época em
que terminou o ginásio, aos 18 anos. Já compunha e tocava
tamborim. Ainda não tocava violão, instrumento que aprendeu
muitos anos depois de ficar famoso no meio artístico. Ou seja,
para compor precisava apenas batucar. Letra e música nasciam
juntas, simultaneamente. Sua primeira composição, o samba Já
desisti, nunca foi gravada. Já me faz Carinhos,
seu primeiro sucesso, foi gravado em 1925 pelo pianista Orlando
Thomás Coelho, conhecido como Cebola. Essa música foi
responsável pela aproximação de Francisco Alves e Ismael
Silva. O cantor, já muito conhecido, estava interessado pelas
belas composições do sambista do Estácio, principalmente Me
faz Carinhos, e propôs ao compositor que lhe desse
exclusividade e parceria, e em troca gravaria todas as suas
composições. Empolgado, Ismael não hesitou, e aproveitou para
incluir no negócio o seu parceiro, Nílton Bastos, formando
assim um trio, que posteriormente ficou conhecido como Bambas do
Estácio. Ismael e Nílton compunham e Francisco Alves gravava,
entrando também na autoria. Mas, em algumas composições da
dupla (ou trio), só constava o nome de Francisco Alves.
Ofendido, Nílton reivindicou seus direitos. A partir daí, as
músicas apareciam sempre com o nome dos três.
O Estácio, na década de 20,
era um reduto de bons compositores como Rubem Barcelos, seu
irmão Bide (Alcebíades Barcelos), Marçal, Edgar Marcelino,
Brancura, Nílton Bastos, entre outros, que promoviam famosas
rodas de samba no largo do Estácio de Sá. Estes jovens
compositores vinham dando um tratamento especial ao gênero
musical samba. Agregaram ao samba existente à época elementos
que permitiam ao folião a junção do ato de sambar, andar e
brincar ao mesmo tempo com um toar bem diferenciado do que se via
até em tão.
Em 12 de agosto de 1928, nasce a primeira escola de samba do
Brasil: a Deixa Falar. Os jovens fundadores Ismael Silva,
Alcebíades Barcelos (o Bide), Brancuda, Baiaco, Milton Bastos,
Edgard, Marçal Velho, dentre outros, criaram a Deixa Falar, que
desfilava pelas ruas da cidade cantando o tal novo samba. Para a
presidência, foi escolhido Osvaldo Lisboa dos Santos.
Ismael Silva e seus amigos eram
alcunhados e considerados pelos sambistas como professores, e
conseqüentemente a Deixa Falar era a escola. Os ensaios eram
realizados em frente à Escola Normal no Estácio, que rendiam
aos sambistas fama de arruaceiros, e, em resposta às críticas e
comparações, Ismael Silva criou a seguinte expressão:
"Deixa falar, nós também somos mestres, somos Escola de
Samba", originando assim o nome do bloco e a expressão
escola de samba.
O porão de uma casa de cômodos
da rua Estácio de Sá, n.º 27, esquina da Maia de Lacerda, era
a sede da escola de samba. A Deixa Falar, além de reunir os
jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia
também melhorar as relações dos sambistas com a polícia, já
que, sem a autorização policial, não poderiam ser promovidas
as inúmeras rodas de samba no Largo do Estácio de Sá. A
situação de perseguição aos sambistas melhorou muito quando o
samba feito pelos jovens da Deixa Falar penetrou no mundo do
disco e do rádio.
Através da Deixa Falar, esses professores realmente inovaram no
tipo de samba. Segundo Ismael Silva, o samba cantado à época
tinha somente um "tan tantam tan tantam", e após a
inovação passou a ter "Bumbum Paticumbum Prugurundum"
(expressão que serviu posteriormente, em 1982, como tema para o
enredo da Escola de Samba Império Serrano, de autoria de Rosa
Magalhães e Lícia Lacerda). Também nos deixaram outras
contribuições em matéria de percussão. Uma delas foi o surdo,
uma invenção de Bide (também consagrado como um dos maiores
ritmistas da história do samba), a partir de uma lata de
manteiga grande e redonda com um coro esticado em cima, preso com
aros. A cuíca também era desconhecida, e a bateria da Deixa
Falar tinha uma tocada por João da Mina, que mais tarde
revelou-se o inventor do instrumento. Também foi levantada a
hipótese de Bide ser o inventor do tamborim (versão não
confirmada por ele), uma vez que os Cucumbis (Cordão do Século
XIX) já utilizavam um instrumento bem próximo ao tamborim, mas
com certeza o tal instrumento pode até não ter sido inventado
pelos mestres do Estácio, mas inegavelmente foram eles que o
readaptaram e incluíram no mundo do samba.
Ismael Silva compôs e deu parcerias para Chico Viola, Francisco
Alves, entre outros. Alguns amigos do sambista do Estácio
tentaram alertá-lo. Francisco Alves sempre saía ganhando,
explorava o compositor. Sem alternativas, ou talvez por puro
comodismo, mas consciente e incomodado, Ismael manteve a
"parceria". As coisas caminharam tranqüilas até que
Ismael, por acaso, conheceu o compositor Noel Rosa. O Rei da Voz
estava conversando num bar com Noel quando Ismael chegou com um
refrão fresquinho, que tinha acabado de compor. Impressionado
com a beleza do estribilho, Noel se ofereceu para fazer a segunda
parte. Francisco Alves, empolgado com o talento dos dois
compositores, convidou Noel para substituir Nílton Bastos na
parceria. O poeta da Vila aceitou, mas como já conhecia os
"métodos" do cantor, se preveniu - impôs a condição
de que o que fosse feito só por ele não teria parceria.
Francisco Alves concordou. Formou-se assim um novo trio, que
também ficou conhecido como Bambas do Estácio, além de Batutas
do Estácio, Gente Boa e Turma da Vila. Noel e Ismael compunham e
geralmente faziam coro nas músicas que Chico gravava, tendo seu
nome incorporado à dupla. Noel Rosa, que também tinha feito
negócios em troca de composições com Francisco Alves, insistiu
muito para que Ismael se tornasse independente.
A "parceria" Noel/Ismael/F. Alves durou até 1934, ano
em que Ismael criou coragem para se desvencilhar de Francisco
Alves. Afinal, o sambista já era conhecido no meio artístico e
vários intérpretes o procuravam para gravar suas músicas, não
dependendo mais de Chico Viola. Além de sentir-se explorado,
Ismael sentia-se humilhado. O Rei da Voz tinha o hábito de
apresentar Ismael em seus shows como "o preto de alma
branca". Isso magoava muito o sambista do Estácio. Mas, de
fato, o grande problema era a exploração de Francisco Alves,
que exigia exclusividade por parte de Ismael e Noel, e, no
entanto, gravava músicas de todo mundo. Influenciado por Noel
Rosa e outros compositores do meio, Ismael pôs fim a esse acordo
do qual ele levava sempre a menor parte. Rumo à independência
com uma carreira voltada para o sucesso.
Francisco Alves, antes seu
"parceiro", sentindo-se "traído", agora não
queria saber mais dele. Noel Rosa, seu grande amigo, morreu
quando Ismael ainda estava na cadeia (envolveu-se em uma briga
com vítima). Um homem de brio, sensível e orgulhoso, Ismael se
deixaria dobrar ao peso da vergonha de ser um ex-convicto. Passou
a evitar os amigos, o meio artístico, os lugares de sempre.
Tinha medo que lhe fizessem perguntas sobre o que tanto queria
esquecer. Enfim, desapareceu. Houve até quem o julgasse morto.
Sozinho, triste, sem dinheiro, perambulou por aí. Sabe-se que
foi morar com uma irmã e alguns sobrinhos, mas de repente
desapareceu. E só voltou ao convívio dos amigos e familiares a
partir da década de 50, quando teve seu grande sucesso Antonico
gravado por Alcides Gerardi.
Com sérios problemas financeiros, Ismael vivia às custas de
minguados direitos autorais, quase uma ninharia. Sempre
desempregado, "ele dizia que considerava o samba como seu
único trabalho". Mas sabe-se que trabalhou na Central, como
chefe de turma da segurança interna e foi auxiliar em um
escritório de advocacia. Serviços leves e temporários, pois
foi curta sua permanência neles.
Em 1960, Ismael ganhou dois
títulos: Cidadão Samba, numa iniciativa do jornalista Sérgio
Cabral, e Carioca Honorário, numa homenagem da Câmara dos
Vereadores. Três anos depois, ficou muito doente, sofrendo com
uma úlcera varicosa. Em 1964, fez algumas apresentações no
ZiCartola. Em 1965, participou ao lado de Aracy de Almeida do
musical O samba pede passagem, no Teatro Opinião,
gravado ao vivo. Nesse mesmo ano, seu nome apareceu muito nos
jornais. Sem dinheiro, o compositor não tinha meios para
assistir ao desfile das escolas de samba. Ismael nunca escondeu o
fato de não gostar da transformação que as escolas de samba
sofreram, com o passar dos anos. Ele dizia que era um espetáculo
bonito, mas agora uma brincadeira cara, sofisticada, não mais
acessível ao povo. Mas nem por isso queria abandonar sua
criação. Passou a dar entrevistas para ver se conseguia um meio
de assistir de perto aquilo que ajudou a criar: "Sou
sambista; quer dizer, sou pobre. Tive que me virar e pedir a todo
mundo para dar um jeito de eu ir à Presidente Vargas".
Como não conseguiu o ingresso, o compositor deu nova
declaração ao jornal: "É injusto que a criação
receba auxílio do governo, enquanto o criador cai no
esquecimento". No ano seguinte, as coisas melhoraram. O
compositor foi convidado pelas autoridades do Rio para assistir
ao desfile e pelo MIS - Museu da Imagem e do Som para dar seu
primeiro depoimento. Além disso, o sambista participou de uma
série de shows em universidades, sendo reconhecido como um mito
da MPB, ou ainda nas palavras de Vinícius de Moraes, "São
Ismael", um apelido carinhoso.
Muito cansado, no fim da década de 60, Ismael ainda estava
doente. Buscou ajuda na religião e passou a freqüentar a Igreja
Messiânica diariamente. Em 1970, o bar Jogral em São Paulo,
reduto da MPB na ocasião, resolveu homenageá-lo. Como estava
sentindo-se bem, Ismael viajou para SP, e aproveitou para fazer
algumas apresentações em programas de TV.
A genialidade de Ismael está
contida em suas músicas. Sua obra influenciou diversos
compositores de várias décadas, entre tantos, Chico Buarque. Em
1972, no seu aniversário, Ismael recebeu um presente muito
especial: um bilhete de Chico Buarque de Holanda, que dizia:
"Ismael, você está cansado de saber da minha
admiração pelos seus sambas. Você sabe o quanto lhe devo por
toda sua obra. O Sérgio Cabral está lhe entregando o meu
presente pelo seu aniversário. É muito menos do que você
merece. Um grande abraço, de coração". Junto com o
bilhete, o presente: um envelope com um cheque.
Suas apresentações foram
ficando esporádicas. Em 1973, Ricardo Cravo Albim produziu o
show Se Você Jurar, com Ismael e a cantora Carmen
Costa: ambos iniciaram a carreira com Francisco Alves. Ismael,
como compositor exclusivo do Rei da Voz; e Carmen, como empregada
doméstica do cantor. Dois anos depois, o compositor foi
homenageado pela Escola de Samba Canarinhos da Engenhoca, de
Niterói. Ismael desfilou emocionado e confessou que esse foi um
dos melhores carnavais de sua vida.
Em dezembro de 1977, Ismael foi
operado da úlcera varicosa que tinha na perna. No ano seguinte,
um pouco antes do Carnaval, teve princípio de enfarte, mas foi
socorrido a tempo. Mas, em 14 de março de 1978, um fulminante
ataque cardíaco o levou. Seu corpo foi velado no MIS (RJ) e
sepultado no Cemitério do Catumbi. Ismael Silva compôs um pouco
mais de uma centena de músicas, a maioria sambas, e poucas
marchas.
Alguns sucessos :
A razão dá-se a quem tem, Noel Rosa, Ismael
Silva e F. Alves (1932)
Adeus, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves (1931)
Aliás, Ismael Silva (1973)
Amor de malandro, Ismael Silva, F. Alves e Freire
Júnior (1929)
Ando cismado, Noel Rosa e Ismael Silva (1932)
Antonico, Ismael Silva (1950)
Assim, sim, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves
(1932)
Boa viagem!, Noel Rosa e Ismael Silva (1934)
Coisa louca, Ismael Silva (1973)
Com a vida que pediste a Deus, Ismael Silva (1939)
Contrastes, Ismael Silva (1973)
Dona do lugar, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves
(1932)
Gosto, mas não é muito, Noel Rosa, Ismael Silva e F.
Alves (1931)
Liberdade, Ismael Silva e Francisco Alves (1931)
Me diga o teu nome, Ismael Silva, Nílton Bastos e F.
Alves (1931)
Nem é bom falar, Ismael Silva, Nílton Bastos e F.
Alves (1930)
Novo amor, Ismael Silva (1929)
O que será de mim?, Ismael Silva, Nílton Bastos e F.
Alves (1931)
Para me livrar do mal, Noel Rosa e Ismael Silva (1932)
Quem não quer sou eu, Noel Rosa e Ismael Silva (1933)
Se você jurar, Ismael Silva, Nílton Bastos e Francisco
Alves (1930)
Sofrer é da vida, Ismael Silva, Nílton Bastos e F.
Alves (1931)
Tristezas não pagam dívidas, Ismael Silva (1932)
Uma jura que fiz, Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco
Alves (1932)
FONTE:
O Chiado
Brasileiro,
redigido pelo Grupo Memória Berço do Samba